quinta-feira, 9 de julho de 2015

Por que todos os anos retorno à Flip

Eu já devia estar acostumada, mas não tem jeito. Cada vez que vou à Festa Literária Internacional de Paraty acabo me comportando como uma criança que vai pela primeira vez a um desses parques temáticos da Flórida: quero subir em todos os brinquedos e tirar foto com todos os personagens que passam ao meu lado. Desde 2009 não perco uma Flip, desde a noite de abertura na quarta-feira, até o encerramento no domingo. Esta foi, portanto, minha sétima incursão a Paraty para assistir aos debates de dezenas de autores brasileiros e estrangeiros que todos os anos se reúnem naquele recanto histórico à beira-mar, por onde muito ouro brasileiro das Minas Gerais já se escoou para Portugal. Com a mesma sem-cerimônia de nossos antepassados portugueses, volto a Paraty em busca de novas riquezas, só que estas de teor literário, na
tentativa de reestocar minhas reservas internas.

Nunca me decepcionei. Termino o fim de semana carregada de ideias e boas intenções, mas sempre com aquela implacável frase na cabeça: "tantos livros... tão pouco tempo!"

De uma coisa finalmente já me conformei: não dá para se fazer tudo na Flip. É preciso fazer escolhas, algumas delas no escuro. Vai ter sempre aquela mesa maravilhosa à que todo mundo assistiu e você não. Além disso, é preciso deixar um pouco de espaço livre para que o acaso nos surpreenda de vez em quando, entre uma atividade e outra.

Felizmente o acaso não falha: sempre encontro surpresas. É por isso que todos os anos retorno à festa literária com a mesma expectativa da primeira vez. Estes são alguns dos destaques que marcaram o meu fim de semana na Flip:

1) Devo confessar que a escolha de Mario de Andrade como homenageado deste ano me decepcionou no começo. Esperava que fosse alguém mais próximo dos dias atuais, como Manoel de Barros ou Ariano Suassuna, que nos deixaram recentemente. Mas já na primeira discussão em torno do autor de  Macunaíma eu me rendi por completo aos seus encantos. Redescobri este pensador genial que redescobriu o Brasil. Mario de Andrade era sofisticado, curioso, engraçado, educado, mulato, brilhante, erudito, amante da cultura popular, homem ligado à família, homossexual, boêmio, pianista clássico, irreverente, professor, pesquisador, desbravador de novas ideias. Além disso tudo, o danado ainda elaborou um plano para o desenvolvimento da cultura no Brasil, numa época em que ninguém discutia esse assunto: foi ele quem criou e dirigiu o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, que mais tarde seria a Secretaria Municipal de Cultura - um conceito pioneiro, mesmo para os padrões internacionais da época. Pois é. O funcionalismo público brasileiro já teve seus dias de gloria. Bons tempos, aqueles.


2) Na noite de abertura, um ator nos surpreendeu a todos quando apareceu no meio da platéia com um buquê de flores na mão, recitando A Meditação sobre o rio Tietê, o último poema de Mario de Andrade. Fisicamente muito parecido com o homenageado, o ator desceu as escadas declamando os versos em tom emotivo e de forma um tanto improvisada, contrastando com o estilo mais contido dos participantes da mesa. Aquela intervenção performática estava fora do script oficial, disseram. Não foi o ponto alto do evento, mas com certeza deu um toque macunaímico ao encerramento da noite.


3) Todos os dias à hora do almoço, o centro histórico fervilha de artistas. São pessoas das mais variadas procedências, que se fantasiam e vem às ruas tocar seus intrumentos, fazem shows de mágica, dançam, declamam textos de cordel. Em cada esquina, uma nova surpresa. De repente, do nada, me aparece uma moça sorridente com uma espécie de polvo de borracha vermelha na cabeça. Ela me pergunta se quero ouvir uma poesia. A cena é tão absurda, que só posso lhe responder que sim, claro!
Coloco os tentáculos do polvo nos meus ouvidos e a magia começa, como na velha brincadeira do telefone sem fio. A moça recita, com segurança despretensiosa, o poema O Mundo, do Eduardo Galeano. Ouço sua voz me dizer que o mundo, visto de longe, é como "um mar de fogueirinhas", onde "cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras" e "não existem duas fogueiras iguais". Quando termina a poesia, olho à minha volta e constato que todos os que estamos conectados por aquele estranho polvo poético temos um sorriso estampado no rosto. Receosa de parecer aparvalhada, rapidamente agradeço à moça e saio dali com a alma leve e feliz, convicta de que aquela poesia foi escrita e recitada só para mim.

4) Os índios já fazem parte da paisagem da Flip. Estão sempre em grande parte das ruas do centro histórico, vendendo seus cocares, cestos, chocalhos e bijuterias de cores fortes, bem ao gosto dos turistas. Aquilo me incomoda um pouco, pois não consigo entender direito o que tem a ver a cultura pataxó da Bahia com a da aldeia Guarani-Sapukai de Angra dos Reis. Mas desconfio que o Mario de Andrade, mesmo se não fosse capaz de entender muito bem essa relação, aplaudiria a presença de índios brasileiros em um evento literário internacional com o maior entusiasmo. Assim, resolvo aplaudir e fotografar a dança dos índios nas ruas de Paraty, só para me sentir mais próxima do grande Mario.

5) Este ano resolvo passar um pouco mais do meu tempo na Flipinha, onde são as crianças que mandam. Se alguém quiser ouvir uma historia bem contada, basta procurar a sombra de um dos muitos "pés de livros" espalhados pela Praça da Matriz e deixar a imaginação voar solta.


Os contadores de historias são estudantes bem treinados, que passam por um programa de formação de mediadores ao longo de todo o ano em Paraty.


Este ano, os brinquedos da praça foram baseados em desenhos de personagens mitológicos das tribos do Rio Negro (Amazônia), recolhidos pelo antropólogo Theodor Koeh Grumberg em 1905 e que inspiraram Macunaíma.


6) Das palestras a que assisti, a que mais me emocionou foi a do historiador e escritor paulistano Bóris Fausto. Aos 84 anos de idade, o autor de O Crime do Restaurante Chinês, A Revolução de 30 e diversos outros livros sobre a historia do Brasil acaba de lançar um livro completamente diferente dos que já havia escrito. O novo lançamento trata de um tema muito pessoal - a perda da esposa Cynira, mãe de seus dois filhos, com quem foi casado por 49 anos. Fausto falou com muita naturalidade sobre a dor da viuvez, que há quatro anos o deixou meio perdido na vida. Um mês depois da morte da esposa, ele resolveu escrever um diário apenas para colocar as ideias em ordem e ajudar a passar suas manhãs, agora solitárias. Incentivado por sua terapeuta, ele logo transformou o diário num livro, a que deu o nome de O Brilho do Bronze. Quem pensa que se trata de um texto choroso e triste vai se surpreender com a leitura desta pequena joia literária. O senso de humor dele é contagiante. Nem preciso dizer que já saí da Flip com O Brilho do Bronze baixado no meu tablet. Ainda não cheguei ao final do livro, mas já posso recomendá-lo vivamente a todos os que se interessam por temas como o envelhecimento, o casamento e a alegria de viver.


A segunda parte da conversa com Bóris Fausto foi sobre a questão política brasileira atual, onde ele nos deu uma aula de civismo e lucidez. Militante trotskista por dez anos na juventude, Fausto assistiu à ascensão do PT ao poder com esperança e otimismo. Aos poucos ele se desencantou com os descaminhos do governo e hoje critica abertamente a política econômica "ideológica" e "inadequada" que está corroendo o país. Quando o mediador lhe perguntou sobre a oposição, ele respondeu num tiro: "Vai mal, obrigado!" Para ele, a oposição precisa deixar de ser apenas "contra" o governo e ter a coragem de assumir uma nova forma de pensar o Brasil do futuro.

7) Outra mesa de debates que me surpreendeu pela qualidade das experiências e reflexões compartilhadas foi a "Turistas aprendizes", com a participação de duas jornalistas estrangeiras: a argentina Beatriz Sarlo e a portuguesa Alexandra Lucas Coelho. Foi fascinante ver essas mulheres de idades tão diferentes falarem com o mesmo entusiasmo e visão crítica sobre suas vivências no nosso Brasil: a argentina, numa viagem feita nos anos 60, ainda estudante universitária e animada pelo idealismo das esquerdas da época; e a portuguesa, como correspondente na cidade do Rio de Janeiro nos dias atuais, depois de ter vivido e trabalhado em zonas de guerra do Oriente Médio. Esses dois olhares estrangeiros sobre a nossa realidade, em épocas distintas, me cativaram. Daria para eu escrever um blog inteiro sobre esta mesa, mas deixo aqui apenas este pequeno registro e minha recomendação do ótimo livro da Beatriz Sarlo, onde historia e autobiografia se misturam elegantemente: Viagens - da Amazônia às Malvinas.

8) Entre um evento e outro da Flip, sempre dou um jeitinho de passar no atelier do ceramista Dalcir, este artista paratiense de fala mansa e criatividade sem fim. Fico um bom tempo por ali, admirando aquelas obras com feições mitológicas, surpreendentes - muitas delas de grandes proporções -, que são exportadas para diversos países. Este ano tive a sorte de encontrar o artista por lá e pude conversar bastante com ele sobre sua nova coleção de esculturas, onde o feminino e o simbolismo da pomba da Festa do Divino se mesclam numa só entidade. Algum dia - quem sabe? - talvez consiga voar de volta para casa nas asas de alguma delas. Afinal, sonhar é de graça!

9) A noite de sábado terminou com uma verdadeira festa na tenda lotada, onde a grande atração foi o cantor, compositor e poeta Arnaldo Antunes. Junto com ele, a mesa "Desperdiçando Versos" teve também a participação da cantora, compositora e percussionista Karina Buhr, de quem eu nunca tinha ouvido falar.
Esta é, aliás, uma das boas coisas da Flip: você sempre acaba conhecendo autores e artistas novos, mesmo quando não tenta. Neste caso, a dupla me pareceu especialmente desconjuntada - Karina um pouco insegura, Arnaldo bem articulado e completamente zen, depois de uma viagem de vinte dias que fez à Índia. De alguma forma, entretanto, a  música conseguiu unir os dois num show de lirismo improvável. E no final da apresentação, todos saímos da tenda cantando juntos os versos mântricos de Arnaldo Antunes: "Agora / Aqui / Ninguém precisa de si..."

10) O poeta talvez tenha razão: ninguém precisa de si. Mas com certeza todos precisamos muito uns dos outros. Uma das razões mais importantes que me fazem voltar a cada ano à Flip é a  possibilidade divertida de reencontrar amigos queridos por ali, sem hora ou local marcados. É muito estimulante conviver esses poucos dias em Paraty com pessoas que tem interesses semelhantes, mas não necessariamente as mesmas opiniões sobre tudo. 

"Só o outro é interessante", sintetizou com propriedade a jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho em sua apresentação. Concordo plenamente.