sábado, 14 de março de 2015

Encontros em Jericoacoara (2) - Mulheres de areia

Por que será que a gente presta mais atenção às pessoas que nos cercam quando estamos viajando? Naquele amanhecer em Jericoacoara, eu não esperava encontrar ninguém, nem chegar a lugar algum. Apenas caminhava à beira do mar, pelo simples e inexplicável prazer de seguir adiante, sem saber aonde me levaria aquele imenso areal. A praia parecia interminável e a pequena cidade ficava cada vez mais distante, quase uma lembrança de verão.


De repente, alguns pontos escuros começaram a se mexer na areia, distantes. Três deles corriam inquietos de um lado para o outro, enquanto dois permaneciam no mesmo lugar. Ajustei minha vista para tentar identificar o que eram. Seria um grupo de pessoas? Mas o que estariam fazendo aquelas pessoas no meio do nada, longe de tudo e de todos, àquela hora da manhã?

À medida que fui me aproximando, pude me certificar: eram três crianças e duas mulheres de idades diferentes. A mais jovem devia ter seus trinta anos e a outra, perto de cinquenta. Enquanto os pequenos brincavam na areia, as mulheres conversavam animadamente entre si,  indiferentes à minha aproximação. Notei que trajavam roupas de cidade, como se estivessem a caminho do mercado ou da escola das crianças. Poderiam estar perfeitamente inseridas em qualquer ambiente urbano - mas jamais numa praia deserta como aquela, pois não traziam trajes de banho, nem toalha, nem bolsa, nem chapéu para se protegerem do sol. Era como se as duas de repente tivessem surgido da areia e resolvido ficar ali mesmo, só vivendo a vida.

Fiz um cálculo rápido e concluí: para que pudessem estar ali àquela hora da manhã, teriam que ter saído de alguma cidade muito antes do sol nascer. A caminhada na areia, qualquer que fosse seu ponto de origem, teria sido cansativa demais para crianças tão pequenas. Elas, entretanto, brincavam e pulavam alegremente, sem manifestar qualquer sinal de cansaço. De onde teriam vindo?

Sob o pretexto de lhes pedir que me tirassem uma foto com meu celular, interrompi a conversa das duas e aproveitei para matar minha curiosidade.  Depois do clic fotográfico, fui logo perguntando:

-Vocês moram onde?

- Numa casa ali atrás daqueles coqueiros - respondeu a mais velha, apontando para uma duna a uns duzentos metros dali. Chamava-se Chica.

Não dava para se ver nenhuma casa, apenas um tufo verde no alto da duna, semelhante a um pequeno oásis no meio do deserto.

- Mas vocês vieram de onde? - insisti.

- Somos de uma pequena cidade da região da Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso - respondeu Chica. - Meu marido e eu viemos de lá com toda a família, vendendo artesanato nas cidades por onde passamos. Temos oito filhos e uma porção de netos, que foram nascendo pelo caminho. No começo, a gente viajava de ônibus, mas depois ficou muito caro para uma família tão grande como a nossa e aí resolvemos viajar a pé mesmo, de cidade em cidade.

Pensei que estivesse brincando. Como é que pode? Um casal e oito filhos pequenos viajando a pé pelas estradas do Brasil, sem rumo definido? E Chica continua sua historia com tranquilidade, sem dar importância ao meu ar de espanto:

- Nessa época, quando eu estava grávida, era comum os caminhoneiros pararem para nos oferecer carona quando me viam na estrada com aquele barrigão, rodeada de filhos pequenos. Mas eu sempre lhes agradecia a gentileza e explicava: "Estou fazendo meu exercício pré-natal!" Todo o mundo achava graça na gente.

Neste momento, aconchegando-se à mulher mais jovem, Chica diz orgulhosa:

- Essa aqui é minha filha, Ruama. Ela viaja com a gente desde que nasceu e agora já tem três filhos, que sempre nos acompanham.

Ruama sorri e explica, com uma ponta de vaidade:

- Meu nome quer dizer "Amada de Deus".

Chica continua sua historia:

- Um dia ganhamos duas bicicletas de um artesão que não sabia o que fazer com elas, porque estavam muito velhas e enferrujadas. Ele aceitou trocá-las por uns dentes de jacaré que a gente tinha trazido do Mato Grosso para fazer colar.

Reparo no que Chica traz ao pescoço: um vistoso colar artesanal de couro, enfeitado com conchas e dente de jacaré.

A partir do momento em que ganhou essas duas bicicletas, a família Cogumelo - como é conhecida por onde passa - não parou mais de pedalar.

- Já conhecemos todo o litoral nordestino. Moramos em várias cidades da Bahia, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará... Faz dezesseis anos que a gente viaja pelo Brasil todo só de bicicleta.

Ao longo do caminho, outras bicicletas foram aos poucos incorporadas ao patrimônio da família.

- Lá em Canoa Quebrada, por exemplo, a gente conheceu um turista de Fortaleza que nos ofereceu de presente uma bicicleta que ele tinha em casa, mas nunca usava. A gente só precisaria ir lá buscá-la. Então nós fomos!  E assim ganhamos mais uma bicicleta, só que esta era quase nova.

Há dois anos, a família Cogumelo apeou em Jericoacoara e tudo indica que não tem planos de sair de lá tão cedo.

- Resolvemos ficar aqui um pouco mais de tempo, porque o lugar é bom para vender o nosso artesanato. Além disso, as crianças podem ir à escola.

Nas dunas, as três crianças continuam entretidas nas brincadeiras, sem dar atenção à nossa conversa.

Preciso continuar minha caminhada e me despeço das duas mulheres. Antes que me afaste, Chica me mostra o livro que tinha em mãos, no qual eu ainda não havia reparado: era a Bíblia Sagrada. As duas mulheres então me cobrem de bênçãos, desejando-me uma viagem de volta segura e feliz, sob a proteção divina. Deixo-as ali sentadas na areia, abraçadas, acenando sorridentes para mim.

Retomo meu caminho pela praia deserta, com a sensação de que nada me há de faltar.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Encontros em Jericoacoara (1) - Cristiane

O sol ainda não tinha nascido e eu já estava diante do mar em Jericoacoara, uma praia de acesso difícil no litoral cearense. Para se chegar lá, é preciso viajar quatro horas de carro de Fortaleza, sendo que os últimos quinze quilômetros  sem estrada demarcada, no meio de dunas.  Rodeada de mar e de areia naquele amanhecer, eu me sentia distante do mundo. Caminhava com os pés na água, sem saber onde aquela imensidão me levaria. Quanto mais andava, mais a paisagem se estendia à minha frente, sem qualquer sinal de povoado. 

E tome areia. E tome mar. Perdi a noção das horas. 

De repente, sem que eu me desse conta, uma mulher surgiu à minha frente, como se tivesse brotado da areia. Era bem jovem, talvez não tivesse ainda trinta anos. Trazia uma mochila nas costas e os cabelos ondulados  presos em um rabo de cavalo. Vinha correndo no sentido contrário ao meu, olhando em frente, em ritmo compassado, provavelmente acompanhando a batida da música que tocava no seu fone de ouvido. 

Antes que ela passasse direto por mim e desaparecesse no meio das dunas, eu me postei à sua frente, interrompendo a corrida: que me desculpasse a curiosidade, mas eu precisava saber de onde estaria vindo, pois não conseguia avistar casa alguma no meio daquele areal  sem fim. A resposta veio sorridente e de uma enfiada só, daquele jeito direto e desconcertante que os nordestinos tem de falar: 

- Estou vindo ali dos lados de Camocim, que fica depois daquelas dunas bem branquinhas, lá embaixo – está vendo?  É lá que eu moro, mas trabalho em Jericoacoara.  Sou camareira numa pousada. Da minha casa até lá são nove quilômetros pela areia. Quando vou correndo, consigo chegar no trabalho em cinquenta minutos. Se for caminhando, levo duas horas. Quando a maré está alta,  sou obrigada a rodear pelo alto daquelas dunas e aí demora mais. É um pouco longe, mas assim mesmo prefiro morar em Camocim, porque em Jericoacoara o preço dos aluguéis está muito alto. Imagine que lá em Jeri um quartinho mixuruca, só para mim e meu marido, custa quatrocentos reais por mês! Tem gente que prefere pagar tudo isso para não ter que fazer este caminho todos os dias para trabalhar. Mas eu até acho bom – sabe? Aproveito para fazer minha ginástica no caminho para o trabalho. Meu marido também trabalha em Jeri. Ele fica ali na praia, junto dos cavalos, para levar os turistas para passear. Você já fez esse passeio? É muito bom, vai lá depois! Bem, agora preciso ir. Meu nome é Cristiane. Foi bom conversar com você. Tchau! 

E lá se foi a camareira Cristiane, tão rápida que nem tive tempo de pedir para lhe tirar uma foto. Naquela noite algum turista iria descansar o corpo entre os lençóis de uma cama arrumada por ela, depois daqueles nove quilômetros de corrida na areia.