quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Cadê o bloco Chave de Ouro?

É Quarta-Feira de Cinzas e a pergunta não sai da minha cabeça: o que foi que aconteceu com o Chave de Ouro? Procuro alguma nota nos jornais, mas não vejo sequer menção do nome daquele famoso bloco do Rio de Janeiro, que durante décadas forneceu assunto para a notícia mais aguardada e divertida no finalzinho do Carnaval.

Criado em 1943 no subúrbio carioca, entre o Méier e o Engenho de Dentro, o Chave de Ouro só saía às ruas quando a festa já tinha acabado. O bloco era formado em grande parte por foliões inconformados com o rígido horario de encerramento do Carnaval de rua, inapelavelmente marcado para o meio-dia da quarta-feira. Depois das doze badaladas do relógio, era hora da folia terminar e todo o mundo voltar ao batente. Numa demonstração de total descaso pelas determinações do poder público, a turma do Chave de Ouro continuava pulando animadamente pelo centro do Rio, cantarolando marchinhas cheias de malícia, como se não houvesse amanhã. Eram em geral carnavalescos que se haviam excedido na bebida ou haviam sido surpreendidos em atos reprováveis para os padrões da época e, por isso, eram devidamente encarcerados no xilindró durante o reinado de Momo. Longe de acalmá-los, os dias de prisão pareciam incendiar ainda mais aquela paixão pelo Carnaval. Na Quarta-Feira de Cinzas, os foliões da fuzarca eram soltos e imediatamente retornavam às ruas, cambaleantes mas cheios de energia reprimida, na ânsia de recuperar o tempo perdido. E assim o desfile do Chave de Ouro se repetia todos os anos, bem nas barbas dos defensores da lei.

Não é difícil prever o resultado deste confronto.  A força policial - na época também chamada de "Rádio Patrulha" - corria atrás dos integrantes do Chave de Ouro, que por sua vez se esgueiravam por entre os carros ou se escondiam pelos bares do centro da cidade, para voltar às mesmíssimas ruas assim que a polícia desaparecia da vista. A cada ano que se passava, o bloco só aumentava de tamanho. Um número cada vez maior de pessoas se agregava ao Chave de Ouro, muitas delas só para assistir de perto ao corre-corre e à pancadaria geral. Além dos foliões, policiais e curiosos, havia também outro grupo infalível - o dos repórteres fotográficos, que ziguezagueavam por todos os lados, em busca da imagem gloriosa que seria manchete na primeira página do jornal do dia seguinte.

Este "ritual" carioca começou a ganhar fama no início da década de 50 e se repetiu até o final dos anos 70. Virou tradição do carnaval carioca. Aos poucos, sem alarde, os jornais deixaram de falar no bloco. Vieram outras atrações carnavalescas, construíram o sambódromo na Marquês de Sapucaí, sofisticaram os sistemas de som dos blocos de rua. Mas, sem o Chave de Ouro, o Carnaval de rua do Rio nunca mais foi o mesmo.

A curiosidade me leva a navegar pela internet em busca de alguma explicação para o sumiço das notícias do bloco. Encontro uma reportagem da TV Globo de fevereiro de 1981, em que se noticia o retorno do Chave de Ouro depois de anos sem desfilar. As imagens do bloco são melancólicas. Falta brilho e sobra apreensão nas ruas de Engenho de Dentro por onde passa o bloco, em que comerciantes correm a fechar as portas de suas lojas para não serem saqueadas pelos foliões. A reportagem termina com a informação de que, como agora o Chave de Ouro tinha permissão oficial para desfilar na quarta-feira, no ano seguinte eles iriam sair na quinta-feira.

Se o bloco saiu na quarta ou na quinta-feira daquele ano, ninguém sabe, ninguém viu.

Em 2013, diversos jornais anunciaram a volta do Chave de Ouro às ruas do Rio, mas, no final, o bloco acabou desistindo de desfilar porque "não teve a logística necessária". O fato é que o bloco mais transgressor da história do Carnaval carioca simplesmente perdeu a graça com o fim da repressão. Mudaram os tempos. Agora, dentro e fora do reinado de Momo, tem-se a impressão de que tudo o que é estritamente proibido é ligeiramente permitido.

Leio no noticiário que hoje existe um bloco com um nome aparentemente definitivo: Sepulta Carnaval. Engana-se quem pensa que este bloco irá enterrar a folia na Quarta-Feira de Cinzas. O bloco só vai sair no sábado depois dos feriados. Para quem, como eu, ainda não tinha reparado, esclareço que o Carnaval carioca de 2015 só termina oficialmente no final de fevereiro.

E à turma do Sepulta cumpro o doloroso dever de informar que outros foliões lhe passaram a perna. A gloria de sepultar o Carnaval carioca este ano não caberá a eles, como sugere o lúgubre nome. É que, consultando o calendario oficial da cidade, vejo que vários outros blocos já garantiram seu direito de jogar a pá de cal na folia no último domingo de fevereiro, ainda que com nomes menos sepulcrais.

Renascerão das cinzas os blocos Broxadão a Hora é Essa (praia de Copacabana), Boka de Espuma (Botafogo), Caldo Beleza (Flamengo) e Galinha do Meio-Dia (praia de Ipanema).

Evoé, carnavalescos indomáveis do Rio de Janeiro! A festa vai continuar.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Mamãe eu quero


Mamãe, eu quero. Neste carnaval eu vou é me acabar. Não adianta vir com mimimi nem quaquaquá, porque ninguém me segura. Vou sair num bloco aí qualquer.  As ruas do Rio de Janeiro estão cheias deles. Só preciso escolher um.

Mas qual?

Pego o jornal e percorro com os olhos a lista interminável de blocos, todos devidamente aprovados, com dia, hora e trajeto bem definidos pela prefeitura. Brasileiro é bom nisso. Quando os homens resolvem trabalhar, fazem  tudo direitinho e com bastante antecedência. Primeiro, organizam a bagunça. Depois, deixam a turma se esbaldar na esbórnia triunfal. Mamãe, eu também quero!

Mas agora tenho que me concentrar na minha escolha. Qual será o bloco que mais tem a ver comigo neste carnaval?  São tantas as opções! Decido escolher pelo nome. Vamos lá.

Logo de início, o que mais me chama a atenção é a vulgaridade dos nomes estilo Zorra Total:  Perereka sem Dono, Cutucano Atrás, É Mole Mas Estica, É Pequeno Mas Vai Crescer, Balança Meu Catete, Encosta Que Ele Cresce, Rola Preguiçosa Tarda Mas Não Falha. No começo, até acho graça. Mas são tantos os blocos com nomes  deste tipo, que de repente tudo me parece repetitivo, cansado.  Nomes que antes me pareciam supercriativos passam a ser tão estimulantes quanto um copo de cerveja choca.

Nomes menos apelativos, mas com senso de humor quase infantil, me fazem rir mais: Virilha de Minhoca, Puxa Que É PerucaNunca Mais Bebo Ontem e Me Beija Que Sou Cineasta.

Volto a examinar a lista. Acho simpáticos os blocos que escolhem nomes para homenagear seus próprios bairros, como o Eu Choro Curto Mas Rio Comprido e o Largo do Machado Mas Não Largo da Cerveja. Só que eu não moro nem lá, nem cá. Preciso de uma identificação maior com o meu bloco. Continuo a busca.

Vejo que lá em Bangu tem um bloco cujo nome traduz uma humildade inexplicável: Meia Dúzia de Gatos Pingados. Tô fora. No Humaitá, batizaram um bloco com um nome que não parece prometer grande coisa: Bloco de Segunda. OK, entendi, o bloco sai na segunda-feira de carnaval. Mas, mesmo assim, acho o nome meio desanimado. Se eu for lá e não gostar, a turma da rua Marques pode até rir da minha ingenuidade e me dizer: "A gente bem que te avisou!"

Nomes menos inspirados que esses são os da "categoria hospitalar". Sim, por incrível que pareça, eles existem! Em Campo Grande, criaram um bloco chamado Geriatria e Pediatria. Por mais que me garantam que este seja um bloco animadíssimo, prefiro não pagar para ver. E a Banda dos Inválidos, que sai na Lapa? Sei não, acho que preferiria engrossar as fileiras solidárias do Senta que Eu Empurro, que desfila no mesmo dia no Catete.

Alguns nomes são até poéticos, como o Céu na Terra de Santa Teresa. E tem também aquele bloco do Leblon que inovou em grande estilo, substituindo a exaltação dos prazeres carnais pela mineralidade de um só nome, très minimalista-chic: Areia. Mas nenhum desses nomes conseguiu me cativar este ano.

Confesso que tenho uma queda pelos blocos que homenageiam com singeleza os velhos tempos do carnaval carioca. É o caso do Cordão do Boitatá, Maracangalha e Gigantes da Lira. Também sempre gostei de nomes ingenuamente convidativos, como Simpatia É Quase Amor, Só Falta Você! e Acorda e Vem Brincar.


Mas neste começo de 2015 tenho que encarar a realidade que nos cerca. Sinceramente, não me sinto muito para brincadeira, amor ou simpatia. Quero mais, mamãe.

Enfim decido concentrar minha escolha em alguns blocos que selecionei para integrar aquilo que resolvi chamar de "categoria política". Os nomes me fascinam: Tamo Junto In Folia, Desliza na Justiça, Fogo na Cueca. Poucos me dizem tanto quanto o Nem Muda Nem Sai de Cima. 

Finalmente, sem maiores folias, elejo o meu bloco - aquele cujo nome melhor reflete o estado de espírito em que me encontro neste fevereiro. É o Ai, que vergonha!  Assim mesmo, com ponto de exclamação e tudo. O bloco da comunidade da Rocinha desfila dia 21 na praia de São Conrado, com seus mil integrantes. É pra lá que eu vou, mamãe. Preciso soltar o grito que está preso na minha garganta, no meio da multidão.
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Gigantes da Lira - dona Elisabeth na janela: http://gigantesdalira.org/dona-elizabeth/