terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Vozes de Mariana

Pouco antes do rompimento da barragem de lama de minério na região de Mariana, Minas Gerais, que provocou a maior calamidade ambiental da história do Brasil, a leitura de um livro extraordinário me roubou o sono por várias noites. Vozes de Chernobyl, da jornalista bielorussa Svetlana Alexievich, Prêmio Nobel de Literatura deste ano, é leitura essencial para qualquer pessoa que se importe com o futuro do nosso frágil planeta, já tão maltratado.

Svetlana Alexievich, Prêmio Nobel de Literatura de 2015


Praticamente desconhecida no mercado editorial de língua inglesa e ainda sem tradução para o Português, a obra de Alexievich foi descrita na cerimônia de entrega do Nobel, em outubro passado na capital sueca, como "um monumento ao sofrimento e à coragem dos nossos tempos."  Tive que recorrer à internet para ter acesso a esta obra prima, que afinal consegui ler sob a forma de livro eletrônico, em uma ótima tradução espanhola. Sem qualquer favor, arrisco-me a dizer que este foi o livro mais impactante que já li em toda a minha vida. Foi também, para mim, a leitura mais relevante em termos planetários. 

Muito mais do que uma obra literária, Vozes de Chernobyl é o resultado de um exaustivo trabalho de jornalismo investigativo, onde as únicas vozes que aparecem são de pessoas que vivenciaram diretamente a maior catástrofe ambiental da historia da humanidade, detonada com a explosão de um dos reatores da usina nuclear da pequena cidade de Chernobyl, na então União Soviética, no dia 26 de abril de 1986. A primavera tinha chegado naquela pacata região rural e os campos estavam floridos. O mundo parecia viver em paz, quando, de repente, tudo o que havia ali deixou de existir - pessoas, animais, casas, escolas, vegetação, história, lembranças.



O livro nos faz ouvir as vozes da gente simples que vivia naquela terra e dela tirava o sustento de suas famílias. São vozes dos sobreviventes da tragédia - homens, mulheres e crianças, vidas anônimas que foram violentamente destruídas de uma hora para a outra, por causa da explosão nuclear. Passados dez anos daquele dia de abril,  poucos habitantes da região haviam sido procurados para contar suas historias.

Inconformada com este silêncio inexplicável,  Svetlana Alexievich resolveu ouvi-los. Durante três anos, armada com um gravador de voz, ela entrevistou centenas de sobreviventes, muitas vezes em áreas ainda contaminadas pela radiação, com riscos à própria saúde. Sem demonstrar qualquer pressa, a jornalista conversava com cada entrevistado sobre temas aparentemente desvinculados da tragédia ambiental – amor, escola, casamento, receitas culinárias, cultivo da horta -, fazendo-os reviver aos poucos o que, para muitos, já parecia estar enterrado havia uma década.



Tenho que alertar a quem estiver interessado que esta não é uma leitura fácil. Os depoimentos pessoais são emocionalmente devastadores. Cada capítulo é cuidadosamente construído, em um ritmo crescente de envolvimento do leitor, até atingir o parágrafo final, sempre surpreendente e emocionante. Não dá para se ler tudo de uma só vez. Eu, pelo menos, senti várias vezes necessidade de deixar o livro de lado por uns tempos, apenas para recobrar meu equilíbrio interior, antes de retomar a leitura. Mas, mesmo quando não o estava lendo, o livro nunca me deixou.

Vozes de Chernobyl tem um estilo incomum, difícil de ser definido. Não há conteúdo editorial. Em momento algum se ouve a voz da autora. Todas as palavras do livro são proferidas pelos entrevistados na intimidade da primeira pessoa do singular, como se estivessem falando diretamente conosco.  Aqui e ali, aparecem apenas algumas anotações curtas, para transmitir o clima emocional da entrevista, do tipo [risos], [começa a chorar] ou [faz-se um longo silêncio]. 



Cada capítulo é um monólogo de uma pessoa diferente: um lavrador que estranhou não ouvir o zumbido das abelhas quando aconteceu o acidente na usina nuclear (bem antes dos homens, as abelhas "já sabiam"!); mulheres contratadas pelo governo para lavar as roupas dos soldados "liquidadores", contaminadas pela radiação, e logo ficavam com as mãos cheias de bolhas e feridas; a jovem viúva de um bombeiro que foi chamado no dia da explosão para combater o que acreditava ser apenas um pequeno incêndio, sem qualquer proteção especial; crianças que foram transportadas a outros países e eram sempre vistas com medo e desconfiança por todos; o patriota soviético que se sentia abandonado à própria sorte e recordava com nostalgia os tempos idos, em que o Estado lhe parecia confiável e indestrutível; a velhinha que desafiou a lei e se recusou a abandonar sua casa, mesmo sob a ameaça de armas de fogo; jovens soldados de outras cidades do país, convocados às pressas e sem maiores explicações para evacuar as casas e matar todos os animais que encontrassem pela frente.



Aos poucos, o leitor vai encaixando as peças do quebra-cabeça da União Soviética do final dos anos 80, já bem próxima do seu colapso sócio-político. Neste livro, não se buscam culpados. Todos são vítimas desta catástrofe planetária, que não respeitou fronteiras geopolíticas. A radiação que vazou de Chernobyl foi tão brutal que, em menos de uma semana, se espalhou por toda a Europa. Em duas semanas, países que se acreditavam muito distantes da tragédia, como os Estados Unidos, Canadá e Japão, já haviam detectado sinais desta radiação em seus territórios.

Tragicamente, as consequências do acidente nuclear de Chernobyl ainda estão longe de terminar. A cada ano que passa, cresce o número de pessoas com câncer, deficiências mentais, disfunções neuropsicológicas e mutações genéticas. De cada catorze pessoas que vivem na região, só uma morre de velhice.

Como uma premonição absurda, o livro me perseguiu, desde a primeira página, com a pergunta cruel: E se uma catástrofe ambiental de grandes proporções como esta acontecesse aqui no Brasil?

Eu estava já nas últimas páginas do livro, quando o que parecia um desvario produzido pela emoção da leitura, de repente, aconteceu. No último dia 5 de novembro,  os jornais noticiavam a tragédia: a pacata Bento Rodrigues, na região de Mariana, interior de Minas Gerais, desaparecia do mapa, soterrada sob a lama da mineradora. Era apenas o começo de um monstruoso pesadelo humano e ecológico, cujas proporções ainda não puderam ser completamente avaliadas - se é que algum dia o serão. 

Incapaz de assimilar tanto sofrimento de uma só vez, fiquei vários dias sem coragem para ler as poucas páginas que ainda me faltavam. Da noite para o dia, Chernobyl ficou próximo demais do meu quintal.

Um dos relatos que mais me emocionaram foi o de uma jovem adolescente, sobre a forma como sua avó se despediu da casa onde a família morava, pouco antes de ser evacuada: 

Minha avó pediu para o papai buscar um saco de grãos que estava no sótão e os espalhou pelo jardim: 'Para os passarinhos de Deus'. Pegou uma cesta de ovos e os distribuiu pelo quintal: 'Para o nosso gato e para o cachorro'. Cortou uns pedaços de toucinho. De todos os saquinhos retirou as sementes: de cenoura, de abóbora, de pepino, de cebola. De flores diferentes. E espalhou todas aquelas sementes pelo jardim: 'Que vivam na terra'. Em seguida, fez uma reverência à casa. Se inclinou diante do telhado. Percorreu as macieiras e as cumprimentou, uma a uma.  Na hora de ir embora, vovô tirou o boné.


Assim como Chernobyl, Mariana vivia seu cotidiano tranquilo em um belo dia de primavera, quando o inimaginável aconteceu. 


Entre tantas outras, uma pergunta fica no ar: o que tem para nos contar as vozes de Mariana?








quinta-feira, 9 de julho de 2015

Por que todos os anos retorno à Flip

Eu já devia estar acostumada, mas não tem jeito. Cada vez que vou à Festa Literária Internacional de Paraty acabo me comportando como uma criança que vai pela primeira vez a um desses parques temáticos da Flórida: quero subir em todos os brinquedos e tirar foto com todos os personagens que passam ao meu lado. Desde 2009 não perco uma Flip, desde a noite de abertura na quarta-feira, até o encerramento no domingo. Esta foi, portanto, minha sétima incursão a Paraty para assistir aos debates de dezenas de autores brasileiros e estrangeiros que todos os anos se reúnem naquele recanto histórico à beira-mar, por onde muito ouro brasileiro das Minas Gerais já se escoou para Portugal. Com a mesma sem-cerimônia de nossos antepassados portugueses, volto a Paraty em busca de novas riquezas, só que estas de teor literário, na
tentativa de reestocar minhas reservas internas.

Nunca me decepcionei. Termino o fim de semana carregada de ideias e boas intenções, mas sempre com aquela implacável frase na cabeça: "tantos livros... tão pouco tempo!"

De uma coisa finalmente já me conformei: não dá para se fazer tudo na Flip. É preciso fazer escolhas, algumas delas no escuro. Vai ter sempre aquela mesa maravilhosa à que todo mundo assistiu e você não. Além disso, é preciso deixar um pouco de espaço livre para que o acaso nos surpreenda de vez em quando, entre uma atividade e outra.

Felizmente o acaso não falha: sempre encontro surpresas. É por isso que todos os anos retorno à festa literária com a mesma expectativa da primeira vez. Estes são alguns dos destaques que marcaram o meu fim de semana na Flip:

1) Devo confessar que a escolha de Mario de Andrade como homenageado deste ano me decepcionou no começo. Esperava que fosse alguém mais próximo dos dias atuais, como Manoel de Barros ou Ariano Suassuna, que nos deixaram recentemente. Mas já na primeira discussão em torno do autor de  Macunaíma eu me rendi por completo aos seus encantos. Redescobri este pensador genial que redescobriu o Brasil. Mario de Andrade era sofisticado, curioso, engraçado, educado, mulato, brilhante, erudito, amante da cultura popular, homem ligado à família, homossexual, boêmio, pianista clássico, irreverente, professor, pesquisador, desbravador de novas ideias. Além disso tudo, o danado ainda elaborou um plano para o desenvolvimento da cultura no Brasil, numa época em que ninguém discutia esse assunto: foi ele quem criou e dirigiu o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, que mais tarde seria a Secretaria Municipal de Cultura - um conceito pioneiro, mesmo para os padrões internacionais da época. Pois é. O funcionalismo público brasileiro já teve seus dias de gloria. Bons tempos, aqueles.


2) Na noite de abertura, um ator nos surpreendeu a todos quando apareceu no meio da platéia com um buquê de flores na mão, recitando A Meditação sobre o rio Tietê, o último poema de Mario de Andrade. Fisicamente muito parecido com o homenageado, o ator desceu as escadas declamando os versos em tom emotivo e de forma um tanto improvisada, contrastando com o estilo mais contido dos participantes da mesa. Aquela intervenção performática estava fora do script oficial, disseram. Não foi o ponto alto do evento, mas com certeza deu um toque macunaímico ao encerramento da noite.


3) Todos os dias à hora do almoço, o centro histórico fervilha de artistas. São pessoas das mais variadas procedências, que se fantasiam e vem às ruas tocar seus intrumentos, fazem shows de mágica, dançam, declamam textos de cordel. Em cada esquina, uma nova surpresa. De repente, do nada, me aparece uma moça sorridente com uma espécie de polvo de borracha vermelha na cabeça. Ela me pergunta se quero ouvir uma poesia. A cena é tão absurda, que só posso lhe responder que sim, claro!
Coloco os tentáculos do polvo nos meus ouvidos e a magia começa, como na velha brincadeira do telefone sem fio. A moça recita, com segurança despretensiosa, o poema O Mundo, do Eduardo Galeano. Ouço sua voz me dizer que o mundo, visto de longe, é como "um mar de fogueirinhas", onde "cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras" e "não existem duas fogueiras iguais". Quando termina a poesia, olho à minha volta e constato que todos os que estamos conectados por aquele estranho polvo poético temos um sorriso estampado no rosto. Receosa de parecer aparvalhada, rapidamente agradeço à moça e saio dali com a alma leve e feliz, convicta de que aquela poesia foi escrita e recitada só para mim.

4) Os índios já fazem parte da paisagem da Flip. Estão sempre em grande parte das ruas do centro histórico, vendendo seus cocares, cestos, chocalhos e bijuterias de cores fortes, bem ao gosto dos turistas. Aquilo me incomoda um pouco, pois não consigo entender direito o que tem a ver a cultura pataxó da Bahia com a da aldeia Guarani-Sapukai de Angra dos Reis. Mas desconfio que o Mario de Andrade, mesmo se não fosse capaz de entender muito bem essa relação, aplaudiria a presença de índios brasileiros em um evento literário internacional com o maior entusiasmo. Assim, resolvo aplaudir e fotografar a dança dos índios nas ruas de Paraty, só para me sentir mais próxima do grande Mario.

5) Este ano resolvo passar um pouco mais do meu tempo na Flipinha, onde são as crianças que mandam. Se alguém quiser ouvir uma historia bem contada, basta procurar a sombra de um dos muitos "pés de livros" espalhados pela Praça da Matriz e deixar a imaginação voar solta.


Os contadores de historias são estudantes bem treinados, que passam por um programa de formação de mediadores ao longo de todo o ano em Paraty.


Este ano, os brinquedos da praça foram baseados em desenhos de personagens mitológicos das tribos do Rio Negro (Amazônia), recolhidos pelo antropólogo Theodor Koeh Grumberg em 1905 e que inspiraram Macunaíma.


6) Das palestras a que assisti, a que mais me emocionou foi a do historiador e escritor paulistano Bóris Fausto. Aos 84 anos de idade, o autor de O Crime do Restaurante Chinês, A Revolução de 30 e diversos outros livros sobre a historia do Brasil acaba de lançar um livro completamente diferente dos que já havia escrito. O novo lançamento trata de um tema muito pessoal - a perda da esposa Cynira, mãe de seus dois filhos, com quem foi casado por 49 anos. Fausto falou com muita naturalidade sobre a dor da viuvez, que há quatro anos o deixou meio perdido na vida. Um mês depois da morte da esposa, ele resolveu escrever um diário apenas para colocar as ideias em ordem e ajudar a passar suas manhãs, agora solitárias. Incentivado por sua terapeuta, ele logo transformou o diário num livro, a que deu o nome de O Brilho do Bronze. Quem pensa que se trata de um texto choroso e triste vai se surpreender com a leitura desta pequena joia literária. O senso de humor dele é contagiante. Nem preciso dizer que já saí da Flip com O Brilho do Bronze baixado no meu tablet. Ainda não cheguei ao final do livro, mas já posso recomendá-lo vivamente a todos os que se interessam por temas como o envelhecimento, o casamento e a alegria de viver.


A segunda parte da conversa com Bóris Fausto foi sobre a questão política brasileira atual, onde ele nos deu uma aula de civismo e lucidez. Militante trotskista por dez anos na juventude, Fausto assistiu à ascensão do PT ao poder com esperança e otimismo. Aos poucos ele se desencantou com os descaminhos do governo e hoje critica abertamente a política econômica "ideológica" e "inadequada" que está corroendo o país. Quando o mediador lhe perguntou sobre a oposição, ele respondeu num tiro: "Vai mal, obrigado!" Para ele, a oposição precisa deixar de ser apenas "contra" o governo e ter a coragem de assumir uma nova forma de pensar o Brasil do futuro.

7) Outra mesa de debates que me surpreendeu pela qualidade das experiências e reflexões compartilhadas foi a "Turistas aprendizes", com a participação de duas jornalistas estrangeiras: a argentina Beatriz Sarlo e a portuguesa Alexandra Lucas Coelho. Foi fascinante ver essas mulheres de idades tão diferentes falarem com o mesmo entusiasmo e visão crítica sobre suas vivências no nosso Brasil: a argentina, numa viagem feita nos anos 60, ainda estudante universitária e animada pelo idealismo das esquerdas da época; e a portuguesa, como correspondente na cidade do Rio de Janeiro nos dias atuais, depois de ter vivido e trabalhado em zonas de guerra do Oriente Médio. Esses dois olhares estrangeiros sobre a nossa realidade, em épocas distintas, me cativaram. Daria para eu escrever um blog inteiro sobre esta mesa, mas deixo aqui apenas este pequeno registro e minha recomendação do ótimo livro da Beatriz Sarlo, onde historia e autobiografia se misturam elegantemente: Viagens - da Amazônia às Malvinas.

8) Entre um evento e outro da Flip, sempre dou um jeitinho de passar no atelier do ceramista Dalcir, este artista paratiense de fala mansa e criatividade sem fim. Fico um bom tempo por ali, admirando aquelas obras com feições mitológicas, surpreendentes - muitas delas de grandes proporções -, que são exportadas para diversos países. Este ano tive a sorte de encontrar o artista por lá e pude conversar bastante com ele sobre sua nova coleção de esculturas, onde o feminino e o simbolismo da pomba da Festa do Divino se mesclam numa só entidade. Algum dia - quem sabe? - talvez consiga voar de volta para casa nas asas de alguma delas. Afinal, sonhar é de graça!

9) A noite de sábado terminou com uma verdadeira festa na tenda lotada, onde a grande atração foi o cantor, compositor e poeta Arnaldo Antunes. Junto com ele, a mesa "Desperdiçando Versos" teve também a participação da cantora, compositora e percussionista Karina Buhr, de quem eu nunca tinha ouvido falar.
Esta é, aliás, uma das boas coisas da Flip: você sempre acaba conhecendo autores e artistas novos, mesmo quando não tenta. Neste caso, a dupla me pareceu especialmente desconjuntada - Karina um pouco insegura, Arnaldo bem articulado e completamente zen, depois de uma viagem de vinte dias que fez à Índia. De alguma forma, entretanto, a  música conseguiu unir os dois num show de lirismo improvável. E no final da apresentação, todos saímos da tenda cantando juntos os versos mântricos de Arnaldo Antunes: "Agora / Aqui / Ninguém precisa de si..."

10) O poeta talvez tenha razão: ninguém precisa de si. Mas com certeza todos precisamos muito uns dos outros. Uma das razões mais importantes que me fazem voltar a cada ano à Flip é a  possibilidade divertida de reencontrar amigos queridos por ali, sem hora ou local marcados. É muito estimulante conviver esses poucos dias em Paraty com pessoas que tem interesses semelhantes, mas não necessariamente as mesmas opiniões sobre tudo. 

"Só o outro é interessante", sintetizou com propriedade a jornalista portuguesa Alexandra Lucas Coelho em sua apresentação. Concordo plenamente. 


sábado, 2 de maio de 2015

Eu fui às touradas de Sevilha

Tem gente que viaja para descansar ou fugir da rotina. Tem outros que querem conhecer novas culturas, experimentar comidas diferentes, ampliar horizontes. Tirar fotos e comprar um monte de lembrancinhas que espichem o prazer da viagem depois da volta para casa também faz parte da bagagem de qualquer turista. Nada contra. Faço sempre tudo isso, sem culpa nenhuma. Ultimamente, entretanto, tenho notado que a maior riqueza trazida de minhas viagens tem sido, cada vez mais, um olhar renovado para dentro de mim mesma.   Em meio às lembranças, fotos e anotações do que foi visto e aprendido longe do meu cotidiano, logo embarco em uma nova viagem, mais rica e profunda, de revisão de meus próprios valores, conhecimentos e certezas.

Sevilha, a bela capital da Andaluzia, no sul da Espanha, provocou um turbilhão dentro de mim. Como qualquer turista, fiquei encantada com a beleza de suas ruas, monumentos, cultura e historia. Como pessoa, entretanto, vivenciei uma pequena surpresa, constrangedora para mim mesma: resolvi assistir a uma tourada na Real Maestranza de Caballería - um espetáculo chocante e decadente, ao qual eu jamais imaginei que fosse capaz de ir.  Logo eu, que sempre critiquei quem apreciava e frequentava esse tipo de entretenimento bárbaro, onde a crueldade é aplaudida como uma nobre manifestação artística.

Pois é. Confesso que fui. E fui porque quis, ninguém me forçou.


Tento me justificar de todas as formas. Afinal, sem ter feito planos para isso, calhei de estar em Sevilha bem no meio da semana da Feria de Abril, uma das mais belas festas tradicionais da Europa.



Todos os anos, durante seis dias, Sevilha vira uma festa a céu aberto, com as ruas repletas de homens e mulheres em trajes típicos de cores vistosas e inúmeras charretes puxadas a cavalos por todos os lados. Boa parte do comércio fecha durante a semana. Só quem não tem mesmo jeito de justificar a ausência do batente é que vai trabalhar nesses dias de festa.


Uma das maiores atrações da Feria é a abertura da temporada anual das touradas na mais antiga Plaza de Toros da Espanha. Descubro que ainda há ingressos à venda - que sorte!  Encantada com minha boa estrela, nem penso duas vezes: compro logo ingressos para a tourada daquele mesmo dia. Só existem assentos disponíveis no lado do sol, pois os do lado da sombra há muito já foram comprados por aficionados mais previdentes e em geral de alto poder aquisitivo. Nem ligo para isso. Afinal, o simples fato de estar ali naquele dia já é para mim uma grande conquista.


Enquanto cantarolo mentalmente a ária do Toreador da ópera Carmen de Bizet, a fantasia do imaginario coletivo passeia pela minha cabeça. Revejo obras de arte famosas que celebram a dança da morte entre touros e toureiros, produzidas por artistas como Goya, Miró e Picasso.




Na literatura, não faltam elogios à arte da tauromaquia. Heminway escreveu inúmeras páginas entusiasmadas sobre a faina dos toureiros e ainda gabava-se de ter assistido de perto à agonia e morte de cerca de 1500 touros.

O poeta andaluz Federico García Lorca certa vez disse que a tourada era "a festa mais culta que há no mundo". (Como assim, "culta"? Acho o termo exagerado, mas como quem disse isso foi o García Lorca... deixo a estranheza para lá e me concentro na promessa de grandes emoções daquela tarde de sol.) 

E o nosso João Cabral de Melo Neto, que viveu treze anos na Espanha, alguns dos quais na sua amada Sevilha, era grande aficionado das touradas. Em um de seus poemas, ele presta homenagem "ao mais asceta" de todos os toureiros, Manolete, que demonstra aos poetas "como domar a explosão com mão serena e contida, sem deixar que se derrame a flor que traz escondida."

Se tantos artistas e intelectuais famosos se confessaram escancaradamente deslumbrados com as touradas, como é que eu poderia resistir ao ambiente festivo de uma Corrida de Touros em Sevilha? É tudo tão colorido e bonito! E os touros? Ah, bem, deixa os touros para lá. Abafo qualquer sentimento de comiseração que eu possa ter para com os animais que irão ser chacinados dali a pouco à minha frente. Eu quero é festa. 

Enquanto espero o início das atividades, abro distraidamente o folheto do programa e encontro a lista dos seis touros condenados a morrer naquela tarde. É uma lista bizarra, com o nome e a data do nascimento de cada um (vejo que todos tem entre quatro e cinco anos de idade), bem como a cor da "capa" (ou seja, do pelo do animal), o peso (todos tem mais de 500kg) e o nome da "ganadería" (criador de gado). De repente, por mais que eu tente ignorar aquela obviedade, cada um daqueles touros condenados à morte se transforma num ser vivente, com personalidade e sentimentos proprios.  



Aquilo que para mim parecia a promessa de uma bela festa de cores e emoções fortes rapidamente se transforma num espetáculo deprimente. Logo de início, um tristonho show de abertura se arrrasta pela areia, ao som de cornetas. Vejo desfilar um grupo de cavalos e toureiros presunçosos, engalanados como se ainda estivessem na época da Inquisição espanhola. A Maestranza se transforma num teatro dantesco, insuportavelmente falso e cruel. 

De repente, surge o primeiro touro, correndo desorientado pela arena. Os ajudantes do toureiro principal iniciam seu bailado de capas coloridas, numa luta desigual contra aquele animal já condenado. Tudo parece obedecer a uma coreografia rigorosamente ensaiada. Depois da dança das capas, entra o picador, montado em um cavalo de olhos vendados e orelhas tapadas. Tenho a impressão de que o cavalo está também drogado, pois ele não foge das violentas chifradas do touro, aguentando o tranco com um estoicismo nada natural. A missão do picador é desferir uma série de estocadas no touro, para enfraquecê-lo bem, antes do toureiro entrar em cena. Em seguida, é com enorme ferocidade que o toureiro espeta banderilhas no lombo do touro já exausto. A essas alturas, o sangue escorre abundantemente pelos dois lados do corpo do animal. Depois de assistir à estocada fatal do Matador, quando o touro se esvai em sangue, completamente humilhado e rendido, estou decidida: não quero mais ver o resto do espetáculo. Já vi o suficiente.

Mas, para mim, o momento mais surpreendente de toda a tourada acontece dentro de mim mesma: em vez de deixar a arena, decido ficar mais tempo ali, para assistir ao segundo número. E depois ao terceiro. E ainda ao quarto. Não me peçam para explicar. É complicado compreender os descaminhos da mente humana. Até agora estou tentando entender por que motivo não deixei aquela arena logo de uma vez. Finalmente, quando só faltavam os dois últimos touros do programa, consigo me levantar e ir embora dali.


Descendo as escadas do Maestranza, vejo um grupo de jovens indianos (ou serão paquistaneses?) que, como eu, também resolvem sair antes do final do espetáculo. Por alguns segundos nossos olhares turistas se cruzam, meio envergonhados. Alguém poderia nos explicar o  que é que a gente tinha ido fazer ali?

Grandes escritores podem dizer o que quiserem, pintores célebres podem produzir obras-primas inesquecíveis, os melhores músicos podem compor quantas belas canções desejarem sobre a dança da morte entre touros e toureiros. Todos tem o direito de pensar o que quiserem. Mas de uma coisa estou certa:  tourada não é nem arte nem cultura. 

Agora posso dizer a todo o mundo que já fui a uma tourada na vida. Sim, e daí? Digo isso com uma certa vergonha por não ter refletido melhor antes de comprar aqueles ingressos, movida por um entusiasmo de turista infantil. Mas também não me penitencio por isto, apenas observo. Depois desta tarde no Maestranza de Sevilha, acho que agora me conheço um pouco melhor. Touradas, nunca mais.

E constato, desapaixonada e sem alarde: eu fui às touradas de Sevilha. Sem parará-tim-buns.











segunda-feira, 6 de abril de 2015

Encontros em Jericoacoara (3) - Gente que brilha

É difícil fotografar a beleza de um lugar que a gente visita. Quase sempre as imagens mais belas – aquelas que permanecem na nossa lembrança muitos anos depois - ficam escondidas atrás de sua gente, dos pequenos gestos, da conversinha miúda.
Jericoacoara é desses lugares que deixam a gente meio desorientada numa primeira viagem, sem saber em que concentrar nosso olhar de turista, sempre ávido por novidades:  se na beleza das praias ou na das pessoas em quem esbarramos a cada momento.

Ricardo é um desses habitantes de Jeri que fazem a gente refletir sobre as nossas próprias escolhas de vida. Nascido e criado na cidade de São Paulo, um belo dia se cansou da selva de pedra e resolveu se mudar de mala e cuia para recomeçar a vida no litoral nordestino.  As velhas receitas da avó libanesa inspiram hoje o
cardápio do seu simpático restaurante árabe Káfila,  bem no centro de Jeri, onde a comida é simples, mas satisfaz. Gostoso, mesmo, é conversar com ele sobre a vida que leva ao lado da esposa Susana e do filho do casal, Gabriel, de cinco anos.  Sem pressa e sem pontos de exclamação, ele fala com a serenidade de quem não tem dúvidas sobre a decisão de se mudar para lá.  “Meu filho brinca na rua, todo o mundo conhece ele por aqui, vai a uma escolinha maravilhosa perto da nossa casa e ainda pode ir a praia todos os dias... Em São Paulo eu jamais teria condições financeiras de proporcionar uma vida tão rica quanto essa para ele.”

Além de trabalhar no restaurante, Ricardo também é instrutor de kitesurf – a modalidade de esporte mais popular da região, que atrai gente do mundo inteiro, por causa dos ventos que não param de soprar sobre o belo mar de água morna, especialmente no segundo semestre. Sua maior preocupação como instrutor deste esporte radical é a segurança. O curso básico leva três dias, cada um com três horas de muita teoria e alguma prática, num total de nove horas de instrução. O mais importante, segundo Ricardo, é o aluno não ter pressa para entrar no mar e realizar manobras radicais. Com calma e responsabilidade, cada um aprende a respeitar os proprios limites e a se divertir no mar, qualquer que seja a sua idade. Seu aluno mais idoso tem mais de oitenta anos e o mais jovem, apenas sete. Muito em breve ele irá ganhar um aluno ainda mais novo: seu filho Gabriel, que deve começar as aulas este ano.

                                                        **********
Todos os dias antes do sol nascer, as ajudantes de cozinha Val e Maria saem da pequena cidade litorânea de Preá para chegar à pousada de Jeri onde trabalham. O trajeto de van leva cerca de uma hora. Quando o primeiro hóspede da pousada aparece no restaurante para tomar o café da manhã, elas já assaram três tipos diferentes de bolo, prepararam diversos sucos de frutas,  arrumaram as mesinhas e guarneceram o buffet de quitutes nordestinos.  Quando algum hóspede chega, elas se apressam a lhe trazer o cardápio com as opções do dia, sorridentes e discretas, sempre falando o mínimo necessário. Poucos hóspedes lhes prestam atenção. Eu também me distraio e, para falar a verdade, quase não reparo nelas – são tantas as atrações que nos esperam na mesa e na praia!
Num dia de sol, resolvo sair para almoçar num dos vários restaurantes de Jeri, bem distante da minha pousada. Quando termino de comer, de uma hora para a outra o céu fica negro e uma tempestade assustadora me pega completamente desprevenida.
São raios e trovões para todos os lados. O aguaceiro torrencial me força a buscar refúgio sob um pedaço ridiculamente pequeno de telhado, meus pés já afundados na água barrenta que corre pela rua de terra. Fico imóvel, prisioneira daquele arremedo de telhado. É inútil tentar sair dali.
De repente, do outro lado da rua, vejo dois pares de olhos que me observam atentamente. São Val e Maria, que já estão comodamente abrigadas da chuva, dentro da van que dali a poucos minutos irá levá-las de volta a Preá. As duas cochicham algumas palavras entre si e em seguida uma delas – Maria – de repente salta da van e corre em minha direção para me entregar seu proprio guarda-chuva, com um enorme sorriso no rosto. Reparo que ela ficou com a roupa e o cabelo encharcados. Constrangida, tento lhe dizer que não posso aceitar aquela generosidade que me parece excessiva, mas ela insiste: “Não se preocupe, pode deixar o guarda-chuva na pousada que eu o pego lá amanhã!” E volta correndo para a van debaixo do temporal, para iniciar sua viagem de volta para casa - só que hoje ela irá com a roupa molhada.


Enquanto caminho de volta à pousada, sob a proteção daquele guarda-chuva providencial,  sinto um misto de gratidão e, principalmente, admiração. O poema famoso de Mayakovsky me vem à cabeça:

Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é para brilhar...

No dia seguinte, quando fui tomar meu café da manhã, Maria e Val já estavam lá à minha espera, sorridentes como sempre. Depois do clic da foto, um trecho da música Gente do Caetano me faz cantarolar mentalmente e me acompanha pelo resto do dia:

Gente espelho da vida, doce mistério...

sábado, 14 de março de 2015

Encontros em Jericoacoara (2) - Mulheres de areia

Por que será que a gente presta mais atenção às pessoas que nos cercam quando estamos viajando? Naquele amanhecer em Jericoacoara, eu não esperava encontrar ninguém, nem chegar a lugar algum. Apenas caminhava à beira do mar, pelo simples e inexplicável prazer de seguir adiante, sem saber aonde me levaria aquele imenso areal. A praia parecia interminável e a pequena cidade ficava cada vez mais distante, quase uma lembrança de verão.


De repente, alguns pontos escuros começaram a se mexer na areia, distantes. Três deles corriam inquietos de um lado para o outro, enquanto dois permaneciam no mesmo lugar. Ajustei minha vista para tentar identificar o que eram. Seria um grupo de pessoas? Mas o que estariam fazendo aquelas pessoas no meio do nada, longe de tudo e de todos, àquela hora da manhã?

À medida que fui me aproximando, pude me certificar: eram três crianças e duas mulheres de idades diferentes. A mais jovem devia ter seus trinta anos e a outra, perto de cinquenta. Enquanto os pequenos brincavam na areia, as mulheres conversavam animadamente entre si,  indiferentes à minha aproximação. Notei que trajavam roupas de cidade, como se estivessem a caminho do mercado ou da escola das crianças. Poderiam estar perfeitamente inseridas em qualquer ambiente urbano - mas jamais numa praia deserta como aquela, pois não traziam trajes de banho, nem toalha, nem bolsa, nem chapéu para se protegerem do sol. Era como se as duas de repente tivessem surgido da areia e resolvido ficar ali mesmo, só vivendo a vida.

Fiz um cálculo rápido e concluí: para que pudessem estar ali àquela hora da manhã, teriam que ter saído de alguma cidade muito antes do sol nascer. A caminhada na areia, qualquer que fosse seu ponto de origem, teria sido cansativa demais para crianças tão pequenas. Elas, entretanto, brincavam e pulavam alegremente, sem manifestar qualquer sinal de cansaço. De onde teriam vindo?

Sob o pretexto de lhes pedir que me tirassem uma foto com meu celular, interrompi a conversa das duas e aproveitei para matar minha curiosidade.  Depois do clic fotográfico, fui logo perguntando:

-Vocês moram onde?

- Numa casa ali atrás daqueles coqueiros - respondeu a mais velha, apontando para uma duna a uns duzentos metros dali. Chamava-se Chica.

Não dava para se ver nenhuma casa, apenas um tufo verde no alto da duna, semelhante a um pequeno oásis no meio do deserto.

- Mas vocês vieram de onde? - insisti.

- Somos de uma pequena cidade da região da Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso - respondeu Chica. - Meu marido e eu viemos de lá com toda a família, vendendo artesanato nas cidades por onde passamos. Temos oito filhos e uma porção de netos, que foram nascendo pelo caminho. No começo, a gente viajava de ônibus, mas depois ficou muito caro para uma família tão grande como a nossa e aí resolvemos viajar a pé mesmo, de cidade em cidade.

Pensei que estivesse brincando. Como é que pode? Um casal e oito filhos pequenos viajando a pé pelas estradas do Brasil, sem rumo definido? E Chica continua sua historia com tranquilidade, sem dar importância ao meu ar de espanto:

- Nessa época, quando eu estava grávida, era comum os caminhoneiros pararem para nos oferecer carona quando me viam na estrada com aquele barrigão, rodeada de filhos pequenos. Mas eu sempre lhes agradecia a gentileza e explicava: "Estou fazendo meu exercício pré-natal!" Todo o mundo achava graça na gente.

Neste momento, aconchegando-se à mulher mais jovem, Chica diz orgulhosa:

- Essa aqui é minha filha, Ruama. Ela viaja com a gente desde que nasceu e agora já tem três filhos, que sempre nos acompanham.

Ruama sorri e explica, com uma ponta de vaidade:

- Meu nome quer dizer "Amada de Deus".

Chica continua sua historia:

- Um dia ganhamos duas bicicletas de um artesão que não sabia o que fazer com elas, porque estavam muito velhas e enferrujadas. Ele aceitou trocá-las por uns dentes de jacaré que a gente tinha trazido do Mato Grosso para fazer colar.

Reparo no que Chica traz ao pescoço: um vistoso colar artesanal de couro, enfeitado com conchas e dente de jacaré.

A partir do momento em que ganhou essas duas bicicletas, a família Cogumelo - como é conhecida por onde passa - não parou mais de pedalar.

- Já conhecemos todo o litoral nordestino. Moramos em várias cidades da Bahia, Alagoas, Rio Grande do Norte, Ceará... Faz dezesseis anos que a gente viaja pelo Brasil todo só de bicicleta.

Ao longo do caminho, outras bicicletas foram aos poucos incorporadas ao patrimônio da família.

- Lá em Canoa Quebrada, por exemplo, a gente conheceu um turista de Fortaleza que nos ofereceu de presente uma bicicleta que ele tinha em casa, mas nunca usava. A gente só precisaria ir lá buscá-la. Então nós fomos!  E assim ganhamos mais uma bicicleta, só que esta era quase nova.

Há dois anos, a família Cogumelo apeou em Jericoacoara e tudo indica que não tem planos de sair de lá tão cedo.

- Resolvemos ficar aqui um pouco mais de tempo, porque o lugar é bom para vender o nosso artesanato. Além disso, as crianças podem ir à escola.

Nas dunas, as três crianças continuam entretidas nas brincadeiras, sem dar atenção à nossa conversa.

Preciso continuar minha caminhada e me despeço das duas mulheres. Antes que me afaste, Chica me mostra o livro que tinha em mãos, no qual eu ainda não havia reparado: era a Bíblia Sagrada. As duas mulheres então me cobrem de bênçãos, desejando-me uma viagem de volta segura e feliz, sob a proteção divina. Deixo-as ali sentadas na areia, abraçadas, acenando sorridentes para mim.

Retomo meu caminho pela praia deserta, com a sensação de que nada me há de faltar.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Encontros em Jericoacoara (1) - Cristiane

O sol ainda não tinha nascido e eu já estava diante do mar em Jericoacoara, uma praia de acesso difícil no litoral cearense. Para se chegar lá, é preciso viajar quatro horas de carro de Fortaleza, sendo que os últimos quinze quilômetros  sem estrada demarcada, no meio de dunas.  Rodeada de mar e de areia naquele amanhecer, eu me sentia distante do mundo. Caminhava com os pés na água, sem saber onde aquela imensidão me levaria. Quanto mais andava, mais a paisagem se estendia à minha frente, sem qualquer sinal de povoado. 

E tome areia. E tome mar. Perdi a noção das horas. 

De repente, sem que eu me desse conta, uma mulher surgiu à minha frente, como se tivesse brotado da areia. Era bem jovem, talvez não tivesse ainda trinta anos. Trazia uma mochila nas costas e os cabelos ondulados  presos em um rabo de cavalo. Vinha correndo no sentido contrário ao meu, olhando em frente, em ritmo compassado, provavelmente acompanhando a batida da música que tocava no seu fone de ouvido. 

Antes que ela passasse direto por mim e desaparecesse no meio das dunas, eu me postei à sua frente, interrompendo a corrida: que me desculpasse a curiosidade, mas eu precisava saber de onde estaria vindo, pois não conseguia avistar casa alguma no meio daquele areal  sem fim. A resposta veio sorridente e de uma enfiada só, daquele jeito direto e desconcertante que os nordestinos tem de falar: 

- Estou vindo ali dos lados de Camocim, que fica depois daquelas dunas bem branquinhas, lá embaixo – está vendo?  É lá que eu moro, mas trabalho em Jericoacoara.  Sou camareira numa pousada. Da minha casa até lá são nove quilômetros pela areia. Quando vou correndo, consigo chegar no trabalho em cinquenta minutos. Se for caminhando, levo duas horas. Quando a maré está alta,  sou obrigada a rodear pelo alto daquelas dunas e aí demora mais. É um pouco longe, mas assim mesmo prefiro morar em Camocim, porque em Jericoacoara o preço dos aluguéis está muito alto. Imagine que lá em Jeri um quartinho mixuruca, só para mim e meu marido, custa quatrocentos reais por mês! Tem gente que prefere pagar tudo isso para não ter que fazer este caminho todos os dias para trabalhar. Mas eu até acho bom – sabe? Aproveito para fazer minha ginástica no caminho para o trabalho. Meu marido também trabalha em Jeri. Ele fica ali na praia, junto dos cavalos, para levar os turistas para passear. Você já fez esse passeio? É muito bom, vai lá depois! Bem, agora preciso ir. Meu nome é Cristiane. Foi bom conversar com você. Tchau! 

E lá se foi a camareira Cristiane, tão rápida que nem tive tempo de pedir para lhe tirar uma foto. Naquela noite algum turista iria descansar o corpo entre os lençóis de uma cama arrumada por ela, depois daqueles nove quilômetros de corrida na areia. 





quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Cadê o bloco Chave de Ouro?

É Quarta-Feira de Cinzas e a pergunta não sai da minha cabeça: o que foi que aconteceu com o Chave de Ouro? Procuro alguma nota nos jornais, mas não vejo sequer menção do nome daquele famoso bloco do Rio de Janeiro, que durante décadas forneceu assunto para a notícia mais aguardada e divertida no finalzinho do Carnaval.

Criado em 1943 no subúrbio carioca, entre o Méier e o Engenho de Dentro, o Chave de Ouro só saía às ruas quando a festa já tinha acabado. O bloco era formado em grande parte por foliões inconformados com o rígido horario de encerramento do Carnaval de rua, inapelavelmente marcado para o meio-dia da quarta-feira. Depois das doze badaladas do relógio, era hora da folia terminar e todo o mundo voltar ao batente. Numa demonstração de total descaso pelas determinações do poder público, a turma do Chave de Ouro continuava pulando animadamente pelo centro do Rio, cantarolando marchinhas cheias de malícia, como se não houvesse amanhã. Eram em geral carnavalescos que se haviam excedido na bebida ou haviam sido surpreendidos em atos reprováveis para os padrões da época e, por isso, eram devidamente encarcerados no xilindró durante o reinado de Momo. Longe de acalmá-los, os dias de prisão pareciam incendiar ainda mais aquela paixão pelo Carnaval. Na Quarta-Feira de Cinzas, os foliões da fuzarca eram soltos e imediatamente retornavam às ruas, cambaleantes mas cheios de energia reprimida, na ânsia de recuperar o tempo perdido. E assim o desfile do Chave de Ouro se repetia todos os anos, bem nas barbas dos defensores da lei.

Não é difícil prever o resultado deste confronto.  A força policial - na época também chamada de "Rádio Patrulha" - corria atrás dos integrantes do Chave de Ouro, que por sua vez se esgueiravam por entre os carros ou se escondiam pelos bares do centro da cidade, para voltar às mesmíssimas ruas assim que a polícia desaparecia da vista. A cada ano que se passava, o bloco só aumentava de tamanho. Um número cada vez maior de pessoas se agregava ao Chave de Ouro, muitas delas só para assistir de perto ao corre-corre e à pancadaria geral. Além dos foliões, policiais e curiosos, havia também outro grupo infalível - o dos repórteres fotográficos, que ziguezagueavam por todos os lados, em busca da imagem gloriosa que seria manchete na primeira página do jornal do dia seguinte.

Este "ritual" carioca começou a ganhar fama no início da década de 50 e se repetiu até o final dos anos 70. Virou tradição do carnaval carioca. Aos poucos, sem alarde, os jornais deixaram de falar no bloco. Vieram outras atrações carnavalescas, construíram o sambódromo na Marquês de Sapucaí, sofisticaram os sistemas de som dos blocos de rua. Mas, sem o Chave de Ouro, o Carnaval de rua do Rio nunca mais foi o mesmo.

A curiosidade me leva a navegar pela internet em busca de alguma explicação para o sumiço das notícias do bloco. Encontro uma reportagem da TV Globo de fevereiro de 1981, em que se noticia o retorno do Chave de Ouro depois de anos sem desfilar. As imagens do bloco são melancólicas. Falta brilho e sobra apreensão nas ruas de Engenho de Dentro por onde passa o bloco, em que comerciantes correm a fechar as portas de suas lojas para não serem saqueadas pelos foliões. A reportagem termina com a informação de que, como agora o Chave de Ouro tinha permissão oficial para desfilar na quarta-feira, no ano seguinte eles iriam sair na quinta-feira.

Se o bloco saiu na quarta ou na quinta-feira daquele ano, ninguém sabe, ninguém viu.

Em 2013, diversos jornais anunciaram a volta do Chave de Ouro às ruas do Rio, mas, no final, o bloco acabou desistindo de desfilar porque "não teve a logística necessária". O fato é que o bloco mais transgressor da história do Carnaval carioca simplesmente perdeu a graça com o fim da repressão. Mudaram os tempos. Agora, dentro e fora do reinado de Momo, tem-se a impressão de que tudo o que é estritamente proibido é ligeiramente permitido.

Leio no noticiário que hoje existe um bloco com um nome aparentemente definitivo: Sepulta Carnaval. Engana-se quem pensa que este bloco irá enterrar a folia na Quarta-Feira de Cinzas. O bloco só vai sair no sábado depois dos feriados. Para quem, como eu, ainda não tinha reparado, esclareço que o Carnaval carioca de 2015 só termina oficialmente no final de fevereiro.

E à turma do Sepulta cumpro o doloroso dever de informar que outros foliões lhe passaram a perna. A gloria de sepultar o Carnaval carioca este ano não caberá a eles, como sugere o lúgubre nome. É que, consultando o calendario oficial da cidade, vejo que vários outros blocos já garantiram seu direito de jogar a pá de cal na folia no último domingo de fevereiro, ainda que com nomes menos sepulcrais.

Renascerão das cinzas os blocos Broxadão a Hora é Essa (praia de Copacabana), Boka de Espuma (Botafogo), Caldo Beleza (Flamengo) e Galinha do Meio-Dia (praia de Ipanema).

Evoé, carnavalescos indomáveis do Rio de Janeiro! A festa vai continuar.


quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Mamãe eu quero


Mamãe, eu quero. Neste carnaval eu vou é me acabar. Não adianta vir com mimimi nem quaquaquá, porque ninguém me segura. Vou sair num bloco aí qualquer.  As ruas do Rio de Janeiro estão cheias deles. Só preciso escolher um.

Mas qual?

Pego o jornal e percorro com os olhos a lista interminável de blocos, todos devidamente aprovados, com dia, hora e trajeto bem definidos pela prefeitura. Brasileiro é bom nisso. Quando os homens resolvem trabalhar, fazem  tudo direitinho e com bastante antecedência. Primeiro, organizam a bagunça. Depois, deixam a turma se esbaldar na esbórnia triunfal. Mamãe, eu também quero!

Mas agora tenho que me concentrar na minha escolha. Qual será o bloco que mais tem a ver comigo neste carnaval?  São tantas as opções! Decido escolher pelo nome. Vamos lá.

Logo de início, o que mais me chama a atenção é a vulgaridade dos nomes estilo Zorra Total:  Perereka sem Dono, Cutucano Atrás, É Mole Mas Estica, É Pequeno Mas Vai Crescer, Balança Meu Catete, Encosta Que Ele Cresce, Rola Preguiçosa Tarda Mas Não Falha. No começo, até acho graça. Mas são tantos os blocos com nomes  deste tipo, que de repente tudo me parece repetitivo, cansado.  Nomes que antes me pareciam supercriativos passam a ser tão estimulantes quanto um copo de cerveja choca.

Nomes menos apelativos, mas com senso de humor quase infantil, me fazem rir mais: Virilha de Minhoca, Puxa Que É PerucaNunca Mais Bebo Ontem e Me Beija Que Sou Cineasta.

Volto a examinar a lista. Acho simpáticos os blocos que escolhem nomes para homenagear seus próprios bairros, como o Eu Choro Curto Mas Rio Comprido e o Largo do Machado Mas Não Largo da Cerveja. Só que eu não moro nem lá, nem cá. Preciso de uma identificação maior com o meu bloco. Continuo a busca.

Vejo que lá em Bangu tem um bloco cujo nome traduz uma humildade inexplicável: Meia Dúzia de Gatos Pingados. Tô fora. No Humaitá, batizaram um bloco com um nome que não parece prometer grande coisa: Bloco de Segunda. OK, entendi, o bloco sai na segunda-feira de carnaval. Mas, mesmo assim, acho o nome meio desanimado. Se eu for lá e não gostar, a turma da rua Marques pode até rir da minha ingenuidade e me dizer: "A gente bem que te avisou!"

Nomes menos inspirados que esses são os da "categoria hospitalar". Sim, por incrível que pareça, eles existem! Em Campo Grande, criaram um bloco chamado Geriatria e Pediatria. Por mais que me garantam que este seja um bloco animadíssimo, prefiro não pagar para ver. E a Banda dos Inválidos, que sai na Lapa? Sei não, acho que preferiria engrossar as fileiras solidárias do Senta que Eu Empurro, que desfila no mesmo dia no Catete.

Alguns nomes são até poéticos, como o Céu na Terra de Santa Teresa. E tem também aquele bloco do Leblon que inovou em grande estilo, substituindo a exaltação dos prazeres carnais pela mineralidade de um só nome, très minimalista-chic: Areia. Mas nenhum desses nomes conseguiu me cativar este ano.

Confesso que tenho uma queda pelos blocos que homenageiam com singeleza os velhos tempos do carnaval carioca. É o caso do Cordão do Boitatá, Maracangalha e Gigantes da Lira. Também sempre gostei de nomes ingenuamente convidativos, como Simpatia É Quase Amor, Só Falta Você! e Acorda e Vem Brincar.


Mas neste começo de 2015 tenho que encarar a realidade que nos cerca. Sinceramente, não me sinto muito para brincadeira, amor ou simpatia. Quero mais, mamãe.

Enfim decido concentrar minha escolha em alguns blocos que selecionei para integrar aquilo que resolvi chamar de "categoria política". Os nomes me fascinam: Tamo Junto In Folia, Desliza na Justiça, Fogo na Cueca. Poucos me dizem tanto quanto o Nem Muda Nem Sai de Cima. 

Finalmente, sem maiores folias, elejo o meu bloco - aquele cujo nome melhor reflete o estado de espírito em que me encontro neste fevereiro. É o Ai, que vergonha!  Assim mesmo, com ponto de exclamação e tudo. O bloco da comunidade da Rocinha desfila dia 21 na praia de São Conrado, com seus mil integrantes. É pra lá que eu vou, mamãe. Preciso soltar o grito que está preso na minha garganta, no meio da multidão.
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Gigantes da Lira - dona Elisabeth na janela: http://gigantesdalira.org/dona-elizabeth/