segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Cicatrizes, amor e fé: uma batalha pela sobrevivência

Um trágico acidente de helicóptero trouxe consequências inimagináveis para a vida do jovem empresário Luiz Octavio Themudo, então com 26 anos de idade. No dia 6 de novembro de 1971, uma explosão destroçou o helicóptero em que ele sobrevoava a cidade de Santiago do Chile para tirar algumas fotos aéreas de uma feira internacional onde o Brasil tinha um stand montado por sua empresa de eventos. Todos os sete passageiros que estavam a bordo - inclusive o piloto, um diplomata brasileiro, um fotógrafo e técnicos de sua equipe de filmagem - despencaram de uma altura correspondente a um edifício de 33 andares, em queda livre. Todos morreram, menos ele.

Sua sobrevivência foi quase um milagre, contrariando todas as previsões médicas, que o davam como praticamente morto. "Tive queimaduras em 62% da superfície do corpo, que me tornaram irreconhecível, com a face transfigurada. E até perdi a conta da quantidade de ossos que quebrei", disse Themudo. "Meu caso era tão grave, que os médicos que vinham me examinar ficavam me olhando, sem saber por onde começar. Chegaram a afirmar que minhas chances de sobrevivência não passavam de 3,5%."

Caso sobrevivesse, os médicos diziam ainda que ele teria que amputar o braço direito e que ficaria cego de um olho. Os prognósticos não poderiam ser menos animadores. Estava tão fragilizado que hoje não tem dúvidas: para morrer, bastava concordar. Dia após dia, nos 45 dias que se seguiram ao acidente, os médicos garantiam que daquela noite ele não passaria.


"Mas os médicos estavam enganados e aqui estou eu, aos 69 anos de idade, aprendendo a remar nesta nossa Lagoa maravilhosa, com meus dois braços e dois olhos intactos",  relembra Themudo com um sorriso maroto no rosto, ainda marcado pelas cicatrizes do acidente.

Themudo é um dos colegas mais assíduos e animados da escolinha de remo do Botafogo, na Lagoa Rodrigo de Freitas. De manhã cedo, ele sempre traz sua máquina para fotografar cenas do cotidiano dos remadores e pequenas confraternizações da turma, sem deixar de prestigiar também as grandes vitórias do clube - como aconteceu no dia 20 de outubro passado, quando o Botafogo conquistou o título de campeão estadual, depois de um jejum de 49 anos.




Após a queda do helicóptero, era como se Themudo tivesse nascido de novo. Tanto assim que, desde aquele ano, todo mês de novembro ele comemora seu aniversário duas vezes: uma no dia do nascimento e outra no dia do acidente.

O processo de recuperação foi uma batalha longa e dolorosa. Primeiro, Themudo permaneceu três meses hospitalizado no Chile, que naquela época, por sorte, era o único país latinoamericano que possuía um hospital especializado em atendimento a queimados. Quando finalmente pôde ser transportado de volta ao Brasil, ficou mais dez meses internado para uma série interminável de procedimentos cirúrgicos e oito horas de fisioterapia por dia. "Fiz ao todo dezessete cirurgias plásticas - sete com o dr Ivo Pitanguy e dez com o dr Ronaldo Pontes. Até que cheguei a um ponto em que achei que meu rosto já estava suficientemente bonito para seguir a vida e decidi não fazer mais nada para melhorá-lo", diz ele, bem humorado.

Durante todo esse tempo, sempre contou com o apoio da esposa Gilda, sua companheira de todas as horas há 46 anos, por quem tem admiração incontida: "Minha mulher é muito bonita- aliás, sempre foi e continua assim. A gente se conheceu nos tempos de colégio e começou a namorar quando eu tinha só treze anos.  Dez anos depois, no dia em que completei 23 anos de idade, nós nos casamos e estamos juntos até hoje." E completa, orgulhoso: "Temos 46 anos de casados e dois filhos maravilhosos - Luiz Claudio e Veronica". Quando em 1971 Themudo viajou para o Chile para montar o estande brasileiro na feira internacional, Gilda o acompanhou.

Themudo relembra um fato curioso que marcou o dia da tragédia: "Nosso amigo e então secretário da embaixada do Brasil no Chile, Guilherme Leite Ribeiro, deveria ter subido junto comigo naquele helicóptero para acompanhar a tomada de fotografias. Na última hora, ele resolveu não embarcar com a equipe, dizendo em tom de brincadeira que estava com medo do helicóptero cair". Em vez disso, o secretário convidou Gilda e sua própria esposa para dar uma volta de carro ali perto, enquanto a equipe sobrevoava a região.  Foi durante este rápido passeio que eles ouviram a notícia do acidente, anunciada pelo rádio do carro.

"Contra todas as previsões, cismei que não iria morrer", diz. Para sobreviver, conta ter desenvolvido uma técnica especial: "Eu xingava todo o mundo que se aproximasse de mim - médicos, enfermeiros, cuidadores. Quando me levaram à sala de cirurgia para amputar meu braço direito, fiz um escândalo. Gritei que eles só poderiam fazer aquilo com a autorização expressa e formal da minha família." E foi assim, no grito, que Themudo conseguiu salvar o braço, que hoje exibe com orgulho - marcado de cicatrizes profundas, mas inteiramente preservado.

Outra técnica desenvolvida por ele durante o longo processo de recuperação foi, em suas palavras, uma "espécie de delírio": "Eu imaginava que um grupo de soldados romanos da Antiguidade saía do meu coração e seguia marchando para uma determinada parte do meu corpo que necessitava de cuidados especiais. Aí eu visualizava esses soldados perfeitamente uniformizados, com martelos, escudos e espadas, trabalhando com determinação para reconstruir essa parte do meu corpo. Eu passava longos períodos no hospital mentalizando essas cenas."

Mais do que qualquer técnica desenvolvida por ele, talvez o instrumento mais eficaz nesta batalha pela sobrevivência tenha sido seu amor à família. Além da presença e dedicação incansáveis da esposa, o tempo todo ao seu lado, Themudo contava também com a força da lembrança do filho Luiz Claudio, na época um bebê de apenas nove meses, que havia ficado no Brasil. Mandou ampliar uma foto do menino e colocou-a acima do seu leito de hospital. Assim, ele podia olhar para o rosto do filho sempre que quisesse, durante todo o tempo em que estivesse hospitalizado, lutando pela vida. "Enquanto olhava para ele, eu dizia para mim mesmo, inúmeras vezes seguidas: Eu não vou morrer. Vou ficar bom para te educar. Vou cuidar de você."

Outra energia que, segundo ele, contribuiu de forma importante para sua recuperação, foram as muitas correntes de oração de parentes e amigos no Brasil. Quanto à possibilidade de um interesse maior por questões espirituais após a experiência do acidente, Themudo reflete: "Não sei bem como definir o que sinto sobre isso. Quando criança, estudei em colégio religioso e até cheguei a pensar em ser padre. Mas depois a vida me distanciou dessas questões. Hoje, o que posso afirmar é que acredito firmemente no poder da fé e na força do pensamento positivo."

Apesar de todo o apoio recebido da família e amigos e do seu otimismo inato, houve dias em que manter o alto astral lhe parecia missão impossível. Foi o que aconteceu no dia 31 de dezembro de 1971. "Naquela noite, eu estava sozinho no meu quarto de hospital, quando ouvi os fogos de artifício que estouravam ao longe na cidade de Santiago, festejando o ano novo. De repente, uma tristeza imensa tomou conta de mim e caí num choro convulsivo. O enfermeiro de plantão, que estava ali ao meu lado, também começou a chorar. E ficamos os dois ali, chorando feito crianças, enquanto o resto do mundo celebrava o ano novo. Foi o dia mais triste da minha vida."

Mas o ano de 1972 seria de vitórias extraordinárias, tanto no âmbito pessoal, quanto no profissional. Cerca de um mês depois daquela virada de ano no hospital, Themudo finalmente pôde embarcar em um avião da Varig e voltar ao Brasil. Ainda seriam necessários mais dez meses de internação hospitalar, incontáveis procedimentos e cirurgias, mas o fato é que Themudo havia recuperado a alegria de viver e confiança no futuro. "Todo o mundo queria me ajudar", relembra com um sorriso. "Acho que nunca consegui tanto sucesso com minha empresa do que quando estava no hospital. Ainda internado, prometi a mim mesmo que, no final daquele ano, eu voltaria ao Chile para participar da mesma feira internacional de Santiago onde eu havia sofrido o acidente."

Foi o que aconteceu. Um ano após o acidente, Themudo recebeu alta do hospital e saiu dali praticamente direto para o aeroporto, de volta à cidade de Santiago, para retomar o trabalho interrompido pela tragédia. "Costumo dizer que fatos são fatos. Contra eles não se pode fazer nada. Por isso temos que encarar a vida como ela é e seguir em frente."

Junto à família, aos poucos a vida voltou ao seu ritmo normal. Luiz Claudio nunca estranhou as marcas do acidente no rosto do pai, pois era muito pequeno quando ocorreu o acidente. "Ele só se deu conta de que eu era diferente dos outros pais muitos anos depois, quando uns amiguinhos com quem brincava comentaram que eu tinha cara de monstro. Até então, aos olhos do meu filho, eu era uma pessoa totalmente normal."

A filha Verônica nasceu em seguida, completando a família, que ele considera sua maior riqueza.



Hoje, passados 42 anos, Themudo fala com naturalidade das dificuldades que encarou nesta batalha pela sobrevivência, sem tentar esconder as cicatrizes do acidente. Cheio de energia e entusiasmo pela vida, no ano passado resolveu aprender a remar. "O remo é realmente um esporte maravilhoso", declara com um sorriso. "Que outro esporte permitiria que eu começasse a praticar aos 68 anos de idade e, ainda por cima, desfrutar de toda essa beleza natural ao ar livre?" E acrescenta, risonho: "Agora, meu grande objetivo na vida é aprender a remar direito."



Além de praticar o remo pelas manhãs, ele começa a desenvolver um trabalho junto à federação de remo para a maior valorização do esporte, já pensando nas Olimpíadas de 2016. "Precisamos atrair mais torcedores para apoiar nossos atletas nas regatas", diz animado.

É com este espírito sempre inquieto e bem humorado, que Themudo resume sua maneira de viver: "A vida é uma corrida de obstáculos. Cabe a cada um de nós vencê-los, um a um. Só isso."












sábado, 2 de novembro de 2013

Com alegria é melhor


Sempre que vou a São Paulo alguma coisa acontece no meu coração. Fico ansiosa por ver alguma nova exposição de arte, conhecer um restaurante diferente, rever amigos.  Sabendo disso, uma amiga de longa data me propôs um encontro num café charmoso e ainda pouco conhecido dos paulistanos, dentro da Biblioteca Brasiliana, no campus da Universidade de São Paulo. Inaugurada em março passado, a biblioteca abriga a maior e mais importante coleção particular de livros do país - a do empresário José Mindlin, com 40 mil volumes, dentre eles alguns livros raros de valor inestimável.  "Você vai adorar aquilo lá", garantiu-me a amiga.

Conforme o combinado,  às 7h45 da manhã em ponto lá estava eu sob o imponente vão arquitetônico da nova biblioteca. Sabia que aquela era a única brecha de horário possível na agenda atribulada da minha amiga, por isso fiz questão de não me atrasar nenhum minuto.

Àquela hora da manhã, o local estava praticamente deserto. Olhei para os lados, procurando minha amiga que certamente não tardaria a chegar, para tomarmos juntas o café da manhã. Logo estaríamos conversando felizes com o reencontro, rindo muito das nossas histórias de vida, sempre compartilhadas com afeto e bom humor.

Como não havia ninguém à vista, entrei rapidamente na biblioteca só para perguntar onde ficava o café e fui prontamente atendida por três recepcionistas amáveis e bem treinados.

- Café? Não, sinto muito, a senhora está enganada. Aqui é a Biblioteca Brasiliana.
- Eu sei, mas a biblioteca não tem um lugar onde se pode tomar um café?
- Não, por enquanto só existe um projeto para a construção de um refeitório, mas ainda nem tem data para ser inaugurado.

Percebendo a expressão de incredulidade no meu rosto, um rapaz da recepção ainda me forneceu uma pequena informação extra, tão amável quanto inútil, apontando na direção oposta:

- Vai ser ali do outro lado do prédio, ó...

Olhei desanimada para aquela imensa distância que nos separava da área indicada, completamente deserta. Por não saber bem o que fazer, resolvi caminhar até lá só para conferir. Sob aquele outro imenso, belo e desocupado vão arquitetônico, uma faxineira confirmou a informação que me havia sido dada pelo recepcionista: sim, dizem que o café será construído ali no segundo andar, mas ninguém ainda sabe quando.

Eu me senti a própria carioca despistada, presa na rede da megalópole paulistana. Meio constrangida, busquei um cantinho discreto para telefonar para a minha amiga, longe dos olhares penalizados dos funcionários locais. Quando ela atendeu, fui logo perguntando, de olho no relógio e no pouco tempo de que dispúnhamos para o nosso café da manhã:

- Você teria algum plano B para o local do nosso encontro? É que já cheguei aqui na Usp e me disseram que aquele café que você queria me mostrar ainda nem foi construído!
- O quê? Nossa! Mas o que é que você está fazendo aí na Usp agora?
- Como assim? Nós não marcamos um café da manhã aqui?
- Sim, marcamos. O lugar era esse, mas o dia do encontro não era hoje e, sim, AMANHÃ!

Perplexa, tento entender o absurdo daquele momento: minha amiga havia marcado nosso encontro num local inexistente, para o qual eu tinha ido em data trocada!

Nós duas rimos daquela situação surreal e, teimosas que somos, remarcamos nosso encontro para o dia seguinte, em local menos charmoso, mas pelo menos com existência garantida.

Para ser sincera, confesso que não estava achando muita graça naquilo tudo, não. Afinal de contas, tinha acordado mais cedo do que precisava e percorrido meia cidade de táxi... para fazer nada. Emburrada, saí do edifício da biblioteca e fui direto ao ponto de táxi que havia ali perto para regressar pelo mesmo trajeto que havia feito minutos antes. Sentia-me como uma intrusa na urbes, frustrada por não ter conseguido realizar o que havia planejado e, ainda por cima, sem ter tomado meu café da manhã. Estava com fome e irritada. Droga de dia!

Já sentada no banco do táxi, resolvi dar uma rápida olhada final naquele belo e moderno edifício do campus universitário. Foi então que aconteceu um fato mágico que mudou completamente meu estado de espírito naquele dia. Nas janelas do andar térreo do prédio da biblioteca, pude ler, em letras garrafais, uma mensagem que parecia gritar só para mim:

"Não faço nada sem alegria" 

Quem teria escrito aquilo ali? Achei graça na frase inesperada. Olhei para o céu e vi que o sol estava querendo sair entre as nuvens. Naquele momento, decidi que, mesmo que nada do que tivesse planejado desse certo, eu teria mais um dia alegre e feliz em São Paulo.



PS: Depois de uma rápida pesquisa pela Internet, descobri que aquela mensagem "mágica" nas janelas da Biblioteca Brasiliana da Usp na verdade se referia à exposição "Não faço nada sem alegria - a biblioteca indisciplinada de Guita e José Mindlin" - mostra permanente de 110 livros escolhidos da coleção do casal Mindlin. Agora preciso voltar lá para ver a exposição!