domingo, 29 de janeiro de 2012

Irineu, o Amigão da Lagoa



Muito antes da calçada à beira da Lagoa virar um dos pontos mais badalados da Zona Sul carioca, Irineu Ferreira já vendia coco junto ao clube de remo do Botafogo, próximo à Curva do Calombo. "Fui o primeiro vendedor de coco que se instalou aqui na Lagoa", diz ele, com orgulho. "Antes era só na praia que havia coco para comprar."  Desde 1963, Irineu trabalhou na manutenção dos barcos e da garagem do clube, atividade que exerceu por 48 anos até se aposentar no ano passado. Naquele tempo, a avenida Epitacio Pessoa era tão sossegada que na hora do almoço Irineu costumava jogar futebol na pista com os colegas.


Apesar de aposentado, o dia começa cedo do mesmo jeito para Irineu: às quatro da manhã já está de pé, varrendo as folhas das árvores que dão sombra ao clube. Ao nascer do sol, Irineu já está orientando os primeiros remadores que chegam para retirar os barcos da garagem, em alto e bom som:

- Vambora, galera! Vocês estão aí parados esperando o quê? Vamos logo, que tem mais gente chegando!

 Todos sabem que o tom é brincalhão, mas a bronca é para valer - e por isso se apressam, obedientes, para dar início logo às atividades do dia.

Irineu nasceu em Araruama, no dia 15 de dezembro de 1928, numa família de catorze irmãos. Depois que o pai morreu e a mãe se casou de novo, a vida do pequeno Irineu sofreu uma reviravolta radical. Inconformado com a chegada do padrasto, resolveu fugir de casa. Tinha apenas onze anos de idade e nenhuma ideia do que fazer para ganhar a vida sozinho. O menino se virou como pôde: trabalhou em colheita de laranja e algodão, cortou cana, tirou leite de vaca, dormiu em banco de praça. "Teve um dia que eu quase morri amassado por um touro, enquanto dormia num curral", relembra, achando graça na história.

Talvez por ter passado tantas dificuldades é que hoje valorize tanto a pequena casa onde mora, construída por ele mesmo dentro do clube. "Tenho um orgulho danado da minha casa e gosto de deixar tudo arrumado, direitinho", diz Irineu. "Sou eu mesmo quem prepara a minha comida, sei cozinhar de tudo: arroz, feijão, frango assado, peixe, empada, espinafre refogado... Também lavo e passo toda a minha roupa. Um homem que vive sozinho tem que aprender a fazer essas coisas todas." Paz de espírito é um dos elementos que mais preza na vida. É devoto de Nossa Senhora de Aparecida, da qual tem três imagens em casa. Não gosta de bebidas alcoólicas: prefere tomar suco de frutas e água de coco. Brincar o Carnaval, nem pensar: só mesmo na televisão.

Irineu cultiva hábitos simples: gosta de pescar, ver televisão e conversar com os amigos que param para conversar na barraca do coco. "Conheci muita gente famosa por aqui, como a Regina Casé, o Tony Ramos, o Ney Latorraca, o Agildo Ribeiro...", conta satisfeito. "Outro dia quem tomou água de coco na minha barraca foi o Eike Batista, que vem sempre correr aqui na Lagoa."

Mas Irineu nem sempre esteve cercado de amigos. A partir do dia em que fugiu de casa, deixando a mãe e os irmãos para trás, teve que enfrentar todo o tipo de adversidades sozinho. Como tinha grande força física, quis ser boxeador e chegou a ganhar "uns trocados" com o esporte. Também tentou a sorte no futebol - esteve no Fluminense para competir por uma vaga de goleiro, mas logo desistiu.  Aos 35 anos de idade, Irineu se cansou da solidão e resolveu procurar de novo a família, que ele não via desde criança.  Foi nesse momento que sua vida deu uma nova guinada radical - só que, desta vez,  foi para melhor. A história deste reencontro é digna de um filme e Irineu a conta com um sorriso largo, carregado de emoção: "Eu não via minha irmã gêmea, Irene, desde que tínhamos onze anos de idade.  Um dia soube onde ela morava e a fiquei seguindo durante três dias - na rua, no ônibus... Por onde ela ia, eu ia atrás. Até que um dia ela veio falar comigo, zangada por estar sendo seguida por um estranho!" Depois que Irineu se identificou, houve uma sucessão de grandes emoções familiares.

Irene levou o irmão para reencontrar-se com a mãe, dona Berenice, que morava em São Pedro da Aldeia. "Minha mãe era vidente, sabia de tudo o que se passava com todos os filhos - coisas certas e erradas", revela o filho, com grande admiração. Em poucos dias, elas planejaram uma festa-surpresa, que reuniria os irmãos, além de grande quantidade de cunhados e sobrinhos de quem Irineu nem sequer suspeitava da existência. "No meio da festa, quando já estavam todos ali reunidos, minha mãe mandou parar o som e anunciou a todos que aquele convidado que ninguém havia reconhecido, ali quieto num canto, era eu! Foi aí que meus irmãos vieram me abraçar e eu não consegui mais parar de chorar naquela noite".

A partir daquele reencontro com a família, Irineu mudou de vida. Foi nessa época que ele começou a trabalhar no Botafogo. A princípio, Irineu pensava que seria remador, mas o clube tinha outros planos. "Eu era muito forte naquele tempo e sem querer acabei quebrando uns remos, que eram de madeira", conta Irineu. "Por causa disso o pessoal do clube achou que, em vez de remar, eu deveria trabalhar na manutenção dos barcos. E deu certo!


Deu tão certo, que hoje é difícil para qualquer pessoa que frequente o Botafogo pensar naquele clube de remo sem a presença constante do Irineu, organizando espaços, distribuindo ordens para todo o mundo. Hoje existem na Lagoa três barcos skiff batizados com o nome de "Irineu": dois no Botafogo e um no Vasco da Gama.

Além disso, acima do portão da garagem onde são guardados os barcos do Botafogo, existe uma placa com o nome do homenageado, "Irineu Ferreira", inaugurada em dia de grande festa no clube.

- Irineu, posso tomar uma água de coco agora e te pagar amanhã? - pergunta Marilia Nutti, aluna da escola de remo do clube.

- Claro que pode, minha filha. Você sabe que mora no meu coração!

Marilia sorri e comenta, enquanto toma o seu coco gelado: "O Irineu é um grande amigo. Aprendi a admirá-lo ainda mais depois que meu filho Victor esteve entre a vida e a morte por causa de uma grave infecção quando tinha poucos meses de vida. O menino foi curado com água de coco, que precisou tomar todos os dias durante mais de seis meses. O Irineu sempre nos ajudou nessa época difícil e, quando eu não podia vir até o clube para comprar o coco, muitas vezes ele se oferecia para levá-lo até a nossa casa. Meu filho, que hoje tem vinte anos, adora o Irineu e desde pequeno o chama de Amigão do Coco."

Além de "Amigão do Coco", Irineu também deveria ser conhecido como o "Amigão da Lagoa", pois além da movimentação dos barcos e remos, está sempre atento à limpeza da água, aos peixes e às aves que vivem ali. Não admite que se jogue lixo em lugar algum, a não ser na lixeira. "A Lagoa está muito melhor hoje do que quando vim para cá, há mais de quarenta anos. Naquele tempo de vez em quando havia mortandade de peixes e um cheiro horrível se espalhava por toda a região. Agora, não: a água está mais limpa, os peixes já não morrem tanto. Quando vejo alguém jogando qualquer coisa na Lagoa, eu dou bronca mesmo: faço a pessoa voltar e catar o lixo que deixou ali. Se todo o mundo fizer isso, a nossa Lagoa vai ficar cada vez melhor e mais bonita."