sábado, 24 de novembro de 2012

Tijolo a tijolo



Hoje foi um dia marcante em minha vida. Daqueles que fazem a gente mexer e remexer nas gavetas da memória afetiva, sem saber direito o que estamos procurando. Pois hoje foi um dia assim, denso de lembranças. É que acabamos de vender nosso pequeno apartamento à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro - o primeiro da nossa vida de casados, para onde nos mudamos em 1970, com o coração apaixonado e a cabeça repleta de planos para o futuro.

Sinto-me confusa com a assinatura desse papel. Estou ao mesmo tempo angustiada e feliz. É como se eu estivesse num daqueles filmes surreais do Woody Allen, em que alguém da platéia de repente pula para dentro da tela do cinema e passa a fazer parte da trama.  Vejo-me como outra pessoa, assistindo a um filme estrelado por mim mesma. Percebo que minha vida prossegue veloz, só que agora no sentido inverso do tempo. Olho para trás e vejo que meu futuro se confunde com a história do meu passado.

Onde era mesmo que eu estava há poucos minutos atrás?

Ah, sim...  Eu estava ali na sala da casa dos meus pais, cabisbaixa, com o coração aos pulos. Éramos tão jovens, meu futuro marido e eu, que meu pai disse "não" ao primeiro pedido de casamento. Apesar da dura resposta negativa, teve ao menos a gentileza de oferecer alguma esperança ao pretendente: para consentir com o nosso casamento, ele exigia que o noivo tivesse um lugar onde morar. Bem, se esta era a condição essencial para a gente se casar, aquele jovem recém-saído da adolescência iria dar um jeito de resolver a questão rapidinho!

De fato, em pouco tempo ele fechou a compra de um pequeno apartamento ainda na planta, financiado a perder de vista pelo Banco Nacional de Habitação.

Naquela época, a Lagoa pouco tinha a ver com o bairro absurdamente valorizado de hoje. Era um recanto sonolento da cidade, composto quase que exclusivamente de casas, com uma grande favela na orla. O túnel Rebouças acabava de ser inaugurado, ligando a Zona Norte à Zona Sul, com um fluxo suave de trânsito. Transporte público, além de precário, era uma verdadeira raridade no bairro. Para os moradores da beira da Lagoa, o que mais incomodava eram os episódios de mortandade de peixes, que periodicamente empesteavam a região.

A compra do apartamento foi um verdadeiro ato de coragem daquele jovem apaixonado. Ele ainda era estudante de engenharia e ganhava dinheiro dando aulas nos então chamados cursinhos de pré-vestibular. Como ainda era menor de idade, só pôde assinar o compromisso de compra do imóvel depois de obter sua emancipação.

Dali para a frente, acompanhamos atentamente cada etapa da construção do edifício, desde o bate-estaca das fundações, tijolo a tijolo, até a entrega das chaves. Após a festa do casório,  finalmente nos mudamos para o apartamento. Com o passar do tempo, a vida nos carregou para outras cidades, outros países. Entre muitas mudanças, nascimento de filhos, idas e vindas, o apartamento parecia estar sempre esperando pacientemente pelo nosso retorno, mesmo quando ocupado por outras pessoas.

Mas a vida nada mais é que uma interminável sequência de mudanças. Com leveza no coração, desejamos que os novos proprietários sejam muito felizes neste cantinho que já não nos pertence, mas que encerra tantas histórias das nossas vidas.

Quanto a nós, em breve iremos nos mudar para outro apartamento logo ali, no andar de cima. Vamos começar a escrever um novo capítulo da nossa longa história, no mesmo prédio que ajudamos a construir enquanto sonhávamos com nosso futuro.




sábado, 22 de setembro de 2012

Para não dizer que não falei de flores


As surpresas mais inesperadas - e também as mais gostosas - são as que estão bem embaixo do nosso nariz. Hoje, por exemplo, quando fui à varanda de casa só para observar se lá fora houve alguma mudança visível neste primeiro dia da primavera, meus olhos "encontraram" as buganvílias em flor. Faz tempo que elas estão floridas ali, bem debaixo do meu nariz.  Mas hoje, de repente, eu as vi de outro jeito e fiquei encantada com a intensidade de sua cor vermelho-maravilha, escandalosamente belas.

Uma navegada rápida pela Internet me trouxe outra informação surpreendente: as buganvílias são flores nativas do Brasil. Talvez este dado seja óbvio para muita gente, mas confesso que não sabia da origem dessa flor que enfeita generosamente o meu cotidiano. Fico só imaginando o frisson que o almirante francês Louis Antoine de Bougainville deve ter sentido quando viu estas flores pela primeira vez, em 1768. 

Bougainville passou por aqui quando estava no comando da primeira viagem de circunavegação realizada sob a bandeira da França - missão, aliás, que ele cumpriu com notável sucesso em três anos. Ganhou muito dinheiro, escapou da guilhotina e continuou amigo dos poderosos que sucederam a Revolução Francesa. Olho atentamente para o retrato deste homem de peruca, tão temido e respeitado em seu tempo, e acho graça na ironia da história: hoje Bougainville é provavelmente mais conhecido no mundo por causa da bela flor brasileira que enfeita minha varanda do que por todas as suas extraordinárias conquistas diplomáticas e militares.

Mas não era sobre nada disso que eu queria falar hoje. Na verdade, neste primeiro dia da primavera, o que eu queria mesmo compartilhar com o mundo todo é algo muito mais pessoal do que a história do nobre almirante francês.

Quero anunciar aos quatro ventos que vou ser avó.

Sim, é isso mesmo: o mistério da renovação da natureza, tão previsível quanto surpreendente, chegou à minha varanda. Flavio e Rachel vão nos dar um(a) neto(a) em março.

Para não dizer que não falei de flores, relembro divertida a canção de protesto que embalou minha adolescência e que agora inexplicavelmente cantarolo com uma doçura que eu não sabia possível, modificando, como mágica, a intenção original do Vandré:

Os amores na mente

As flores no chão

A certeza na frente

A história na mão

Caminhando e cantando

E seguindo a canção

Aprendendo e ensinando

Uma nova lição




sábado, 1 de setembro de 2012

Per favore, signor! Traga depressa um cafezinho para esta mulher madura!

Já perdi a noção do tempo, mas com certeza faz muitos anos que meu marido e eu nos emocionamos com a leitura do belo texto A Mulher Madura, do escritor Affonso Romano de Sant'Anna, na voz do grande Paulo Autran. Com cativante delicadeza, mas em tom provocadoramente sedutor, o texto celebra a beleza da mulher madura com a segurança elegante do homem que sabe flertar.

Pois bem, este texto me ganhou. Depois de ouvir a gravação, resolvi comprar o livro para deliciar-me com cada palavra de louvor à madurez feminina:

A mulher madura é assim - descreve o texto, sedutoramente -, tem algo de orquídea que brota exclusiva de um tronco, inteira... Não é um canteiro de margaridas jovens tagarelando nas manhãs... 

Ah, que maravilha! O texto é pura música para meus ouvidos maduros. Conta mais!

A mulher madura nada no tempo e flui com a serenidade de um peixe... 

Adoro! O que mais?

O corpo da mulher madura é um corpo que já tem história...

Sim, sim!

A mulher madura está pronta para algo definitivo.

Meus olhos buscam ansiosos o parágrafo seguinte, deixando transparecer a mais inquieta imaturidade. E o texto continua, tranquilo e fluido, como se estivesse ditando o óbvio:

Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena...

O quê? Neste momento, abandono a leitura, indignada. Como assim, "merece"? Eu sou uma mulher madura e, no entanto, nunca estive em Siena!

Largo o livro ali mesmo e vou cobrar do meu marido a mais urgente viagem à Itália para eu tomar aquele cafezinho na praça de Siena. Afinal, eu me-re-ço! O assunto virou uma espécie de piada entre nós. Por mais  que tentássemos incluir a bela cidade toscana no roteiro de uma de nossas viagens, nunca conseguíamos sequer chegar perto daquela região. Siena, definitivamente, parecia estar fora do nosso alcance.

A história era tão antiga, que eu já estava mesmo conformada com a ideia de jamais conseguir saborear aquele cafezinho tão sonhado. Nem por isso ficava chateada, pois acredito que alguns sonhos na vida são bonitos assim do jeito que são - simples sonhos, nada mais. Não precisam se tornar realidade para a gente gostar mais deles.

Um belo dia, o destino nos colocou cara a cara com o casal Affonso Romano de Sant'Anna e Marina Colasanti, num evento literário no Rio de Janeiro. Trocamos algumas palavras com os dois e o tal do cafezinho da praça de Siena, inevitavelmente, veio à baila.  Depois de ouvir nossa historinha, o autor de A Mulher Madura dirigiu-se ao meu marido com um sorriso provocador:

- E o que é que você ainda está esperando para levar essa moça para conhecer Siena, rapaz? 

O desafio surtiu efeito: dali a poucos meses, embarcávamos para a Itália com o tal do cafezinho em Siena no topo da lista das nossas prioridades turísticas.

Mal pude acreditar quando, há poucas semanas, atravessamos o portal de entrada daquela jóia de cidade medieval, classificada pela Unesco como Patrimônio da Humanidade: eu finalmente adentrava a cidade do cafezinho mais cobiçado do mundo! Sem olhar para os lados, rumamos como um raio para a monumental Piazza del Campo em forma de meia lua, onde se realiza a tradicional corrida de Palio, emoldurada pelo célebre Palazzo Pubblico, a torre do campanile e a Fonte Gaia, com suas magníficas esculturas de mármore.


Que me perdoem os historiadores, os estudiosos e apreciadores da arte: agora vou tomar meu cafezinho com calma! Siena terá que me esperar um pouco mais.

O garçon nos olhou com aquele ar blasé de quem vê turistas deslumbrados todos os dias. Com indiferença e pressa, trouxe-nos as duas lindas xícaras de cappuccino, que sorvemos encantados, o mais lentamente que podíamos. Nosso garçon jamais saberá que aquele cappuccino que ele nos serviu era, na verdade, o mais puro néctar dos deuses do Olimpo.


Terminado nosso momento mágico-mitológico, pudemos enfim conhecer e visitar as riquezas de Siena, como qualquer mortal.

O melhor dessa história veio depois, passados alguns dias da nossa volta ao Brasil. Revendo as fotos da viagem, um dia fiquei com vontade de reler o texto da Mulher Madura. No meio do texto, a inexistência de uma simples palavra me deixou nada menos do que estupefata:

Epa, cadê o cafezinho?

Incrédula, tive que ler e reler o texto várias vezes para me certificar de que, em nenhum momento, o autor menciona aquele cafezinho da praça de Siena! Como pode uma coisa dessas? Ali não consta o menor vestígio de cafezinho, nem de cappuccino, nem de chocolate, nem mesmo de um simples chá.  Aquele trecho do texto, que tanto alimentou nossos sonhos esses anos todos, na verdade diz:

A mulher madura está pronta para algo definitivo.
Merece, por exemplo, sentar-se naquela praça de Siena à tarde, acompanhando com o complacente olhar o voo das andorinhas e as crianças a brincar.
A mulher madura tem esse ar de que, enfim, está pronta para ir à Grécia.

Huuummm... Sabe que esta releitura acaba de me dar uma boa ideia?



terça-feira, 28 de agosto de 2012

Na Itália, uma surpresa: sou pós-moderna!

Mamma mia! Che cosa succede? Por que de repente alguma coisa acontece no meu coração, como o de uma adolescente que acaba de fazer sua primeira viagem internacional? Um giro de apenas dez dias na Itália bastou para me deixar apatetada com a riqueza histórica e artística daquele povo mediterrâneo.

Devo dizer que não foi a primeira vez que fui à Itália. Desta vez, confesso, fui a Roma e não vi o papa. Mas em compensação peregrinei feliz da vida por uma infinidade de capelas, igrejas e museus da região da Toscana, que exibem o que há de mais precioso na história da arte universal. Com um entusiasmo semelhante ao que senti em minha primeira viagem ao Velho Mundo, lá fui eu, de olhos bem abertos, determinada a registrar na  memória cada detalhe das maravilhas medievais e renascentistas que desfilavam diante de mim.

Firenze, Arezzo, Cortona... Dio mio, isso aqui está bom demais!


Quantas obras de arte e riquezas históricas deslumbrantes, para quem vem de um país tão novo como o Brasil... Funiculi, funiculá! La vita è bella!


E a marcha da turista deslumbrada continua acelerada: Siena, San Gimignano... Como sei bella, Italia!


 Quantos vilarejos encantadores, dos quais eu nem sabia da existência: Cavriglia, Gaiole in Chianti, Vertine, Radda...


À noite, o caminho de volta é sempre em baixo astral. Não porque eu esteja cansada, mas simplesmente porque, depois que o sol se põe nestas paragens, já não encontro mais portas abertas em lugar algum e o jeito é conformar-me em ir dormir. Aqui não gosto de perder meu precioso tempo dormindo!


No dia seguinte, recomeça a peregrinação: Montepulciano, Chiusi... ufa! Como são curtos os dias...


O fato é que, depois de alguns dias de turismo acelerado por tantas cidades medievais, entrando e saindo de museus, subindo e descendo ladeiras, ouvindo os sinos nos campaniles das igrejas a marcar as horas inescapavelmente fugidias, minha cabeça já não acompanha mais aquela fome louca de ver tantas belezas ao mesmo tempo. As informações se embaralham em minha mente.

Maledizione! Droga! Qual é mesmo o nome daquele artista importantíssimo que pintou aquele quadro memorável daquela igreja extraordinária daquela cidade medieval que visitei ontem? (Ou terá sido anteontem?)

Bem mais rápido do que esperava, o cansaço turva meu olhar e agora vejo o que não conseguia ver no início da viagem:  infiltrações nas paredes dos museus, afrescos desbotados, jóias arquitetônicas recobertas de bolor, ruelas escuras, moradias insalubres, rostos melancólicos dos comerciantes de souvenirs baratos made in China.


De um dia para o outro, o que eu chamava de antigo de repente parece ter virado, simplesmente, velho. Deixo de lado meu deslumbre de turista acidental e tento colocar-me no lugar da gente da terra: manter viva toda essa herança cultural deve ser um fardo pesado para quem vive aqui. Só de imaginar o trabalho insano que isso deve dar, sinto-me exausta.


Nem é preciso fazer contas: está claro que não há dinheiro que chegue para tantos reparos ou para a simples manutenção contra a ação do tempo. Como será a vida nestes vilarejos quando chegar o frio e desaparecerem os turistas?

Foi com estes pensamentos cansados que percorri as infindáveis salas do Palazzo Pubblico de Siena, todas decoradas com afrescos nas paredes e obras de arte valiosíssimas, muitas se desmilinguindo diante dos nossos olhos por causa da umidade do ar. À medida que avançava pelo palácio adentro, sala após sala, sentia-me cada vez mais insignificante diante de tanta riqueza cultural.

Ao meu lado, visitantes de diferentes nacionalidades sussurravam expressões de admiração quase religiosa em diversos sotaques: Ah!... Oh!... Mon Dieu!... Espléndido!... Wunderbar!...  

Uma tristeza inexplicável toma conta de mim.

De repente, quando entro na Sala del Mappamondo para admirar o monumental afresco Maestá, pintado em 1315 pelo artista sienense Simone Martini, uma visão absolutamente inesperada me faz sorrir: um círculo branco imenso divide a sala ao meio, solenemente indecifrável, surpreendendo os visitantes pela sua própria inutilidade. Tenho vontade de abraçar com toda a minha afeição aquele intruso contemporâneo - simples, perfeito, belo. Meus olhos, àquelas alturas já cansados de reverenciar tantas obras primas do passado, agora brincam... de bambolê! Oba!


É libertador poder admirar a arte contemporânea sem medo de parecer insensível à arte dos grandes mestres do passado.

Descubro mais tarde que o grande círculo é obra do artista Francesco Carone, nascido em Siena em 1975. Como é bom sentir-me trazida de volta para o aqui e o agora, pelas mãos de um artista que vive no meu tempo. Tenho a mesma sensação refrescante que se tem depois de um banho de cachoeira num dia de calor opressivo. Sinto-me resgatada, renovada, reinventada.

Nesta sala descobri, dentro de mim, o significado e o poder transformador da arte pós-moderna. Certa ou errada, fico feliz com a constatação de que a pós-modernidade agora me pertence.


Divino círculo, tua simplicidade perfeita é o que há de mais belo no mundo. Tu me pertences, eu te pertenço. Obrigada por me sacudir e me fazer ver a vida com novos olhos!



terça-feira, 7 de agosto de 2012

Quem beijou... beijou!

Ué? Você não vai escrever nada no seu blog sobre a Flip deste ano? - me perguntou uma amiga que mora em Nova York. Fiquei meio desconcertada, porque já faz um mês que a Festa Literária Internacional de Paraty sacudiu a charmosa e antiga cidade do litoral do Rio de Janeiro. Como sempre, a Flip, que este ano comemorou sua décima edição com uma bela homenagem a Carlos Drummond de Andrade, realimentou meu espírito leitor e aguçou minha fome de novidades culturais. Depois dos quatro dias de intensa programação de palestras, shows, debates, reencontros com amigos, saborosas experiências gastronômicas e caminhadas pelas ruas de pedras pé de moleque, voltei para casa saltitante, cheia de ideias novas, curiosa e feliz.

O que mais posso acrescentar a tudo o que já foi dito e cantado aos quatro ventos sobre esta festa?

Passado um mês da deliciosa esbórnia cultural, a pergunta de minha amiga agora me faz parar, olhar para trás e refletir sobre o que ficou marcado em mim desta última Flip. Decido não ler minhas anotações e vou direto ao coração vasculhar as lembranças daqueles quatro dias de julho que primeiro vem à minha mente.

1) Lembro-me divertida da viagem de ônibus do Rio de Janeiro para Paraty. Quase todos os passageiros se dirigiam à Flip e o clima era de uma inusitada confraria cultural, em que todos nos entreolhávamos com meios sorrisos, como se já nos conhecêssemos há tempos. Sentou-se ao meu lado um homem de cerca de sessenta anos, que logo puxou assunto e não parou mais de falar durante a viagem. Era a primeira vez que ia à Flip e estava visivelmente ansioso. "Eu sempre tive vontade de ir à Flip, mas nunca tive coragem antes", revelou-me, incompreensivelmente sério. Quando percebeu que eu não entendia o que ele queria dizer, explicou:  é que aquele evento literário era "burguês" demais para alguém tão comprometido com a esquerda como ele, filho de ex-guerrilheira dos tempos da ditadura, exilado político (morou mais de dez anos no Senegal) e militante do PT. "O que  meus companheiros iriam pensar de mim se me vissem na Flip, aplaudindo esses autores de direita?", angustiava-se. Ainda bem que ele não parecia interessado em ouvir minha opinião sobre o tema. Antes que eu pudesse abrir a boca para emitir qualquer opinião, o ex-guerrilheiro disparou a contar sua vida inteirinha durante a viagem, recheada de eventos mirabolantes, dignas de um filme de ação. No final ele resolveu soltar o verbo, talvez encorajado por minha atenção silenciosa, citando nomes, locais e datas da vida underground da década de 70. (Mais tarde, por curiosidade, fui verificar na Internet: eram mesmo informações factuais.) De todos os autores convidados da Flip deste ano, aquele que meu companheiro de viagem mais queria ver era Luís Fernando Veríssimo,  por uma razão bem pouco literária. "É que o Veríssimo apoia o Movimento dos Sem Terra", confidenciou compungido, como quem justifica uma atitude eticamente reprovável.

2) Na manhã do primeiro dia da Flip, a brilhante palestra sobre Carlos Drummond de Andrade dada pelos professores Alcides Villaça (Usp) e Antonio Carlos Secchin (UFRJ) - valeu minha ida a Paraty. O óbvio prazer e respeito mútuo que aqueles dois sentiam em dialogar um com o outro, o tom quase religioso com que recitavam os versos do poeta,  a profundidade de suas análises e a adorável simplicidade da forma com que expressavam suas próprias ideias cativaram meu coração. Eu - ingênua que sou! - imaginava conhecer razoavelmente bem a obra de Drummond só por tê-lo estudado na escola e, de repente, me senti gauche na vida. Ainda tenho muito o que aprender.

3) Como quase sempre acontece, as melhores experiências da Flip são as mais inesperadas. Foi o caso, para mim, da palestra Quadrinhos para Maiores, com os cartunistas Angeli e Laerte.


Para falar a verdade, eu achava que iria assistir a uma sequência de piadas estilo cuca fresca, pontuada por  risadas adolescentes na plateia. Confesso que o que mais me motivava neste evento era ver de perto o Laerte vestido de mulher, nessa forma de expressão curiosamente contraventora que é o crossdressing. Quando o Laerte entrou no palco com aquele esvoaçante vestido longo estampado, lábios carmim, unhas esmaltadas, bijuterias delicadas, trejeitos de tia e voz grossa de homem, pensei: vai começar a comédia. Mas o papo dos dois velhos amigos foi surpreendentemente sério e bom. Eles falaram com lucidez e transparência sobre temas difíceis, como as limitações impostas pelo envelhecimento e os bloqueios de inspiração no processo criativo que os assaltam de vez em quando. Um debate provocador e por vezes emocionante - sempre salpicados de boas risadas, é claro. São surpresas como esta que me fazem voltar à Flip, ano após ano, com entusiasmo renovado.

4) Ao contrário do que aconteceu no ano passado, desta vez São Pedro resolveu colaborar com a Flip. Com aquele céu imaculadamente azul e temperatura amena, quem não conseguiu despregar os olhos dos livros para dar uma voltinha de barco pelas ilhas daquele litoral abençoado... perdeu!


Tanta beleza à nossa volta fez meu amigo Fernando declamar gloriosamente em voz alta, os braços abertos para o céu, do alto do pequeno barco em que navegávamos, a célebre frase do coveiro de Inhaúma: "Quem beijou... beijou! Quem não beijou... não beija mais: agora nós vamos fechar o caixão!"

É isso aí: para quem não foi à Flip, nossos sentimentos. O jeito agora é esperar pela festa do ano que vem.






segunda-feira, 30 de julho de 2012

Já ganhou!

Se dependesse da minha decisão, o remador Isaac Ribeiro, um dos atletas brasileiros que aguardam ansiosamente o momento de competir nos Jogos Parolímpicos de Londres dentro de alguns dias, nem precisava participar da prova: para mim, ele já ganhou a medalha de ouro na dura competição da vida.

Aos 27 anos de idade, Isaac é a prova de que, com força de vontade e determinação, o ser humano é capaz de superar os obstáculos mais difíceis. Quando nasceu, os médicos disseram que ele jamais seria capaz de caminhar, por causa de uma deficiência congênita que lhe deformou as pernas. A família já tinha experiência neste tipo de problema, pois um dos quatro irmãos de Isaac também havia nascido com deficiência semelhante. O caçula seria criado num ambiente familiar em que as dificuldades eram encaradas com naturalidade, no pequeno município de Virginia, sul de Minas Gerais, enquanto o pai trabalhava na ordenha do leite e a mãe nas lides de casa.

Depois de três cirurgias, contra todas as previsões médicas, Isaac aprendeu a andar com as próprias pernas, ainda que bastante curvadas. "Mas o que me salvou mesmo foi o esporte", garante ele. O remo só apareceu há relativamente pouco tempo em sua vida. Sua primeira grande paixão foi o futebol. "Fui o melhor goleiro do time de fut-sal de pessoas normais do Virginia Futebol Clube", afirma ele sorrindo, sem qualquer traço de falsa modéstia.  Desta época, traz as melhores recordações, além de muitas marcas no corpo provocadas por quedas no solo duro das quadras.

Foi o amor pelo esporte que o fez deixar a família em Virginia e vir sozinho para o Rio de Janeiro em 2004, de carona num caminhão, para tentar a sorte na vida. Inicialmente se instalou em Niterói, onde se dedicou à prática da natação na Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos. Foi uma época de grandes dificuldades financeiras e muitas saudades da família. Para poder se manter e se dedicar aos treinos, Isaac trabalhou na área de lanternagem de uma oficina de carros.

No final de 2006, durante uma competição de futebol no Instituto Benjamin Constant, Isaac conheceu Rafael Ceccon, que dava aulas de educação física para cegos e era também técnico de remo no Botafogo. "Ele me convidou para visitar o clube e aquela foi a primeira vez que eu vi um barco a remo na minha vida", lembra Isaac. "Fiquei encantado com o visual da Lagoa e em pouco tempo me entusiasmei com aquele novo esporte. Resolvi então pegar firme no remo."

Isaac e Rafael Ceccon no clube Botafogo da Lagoa
Com muita disciplina e dedicação, Isaac treinava todos os dias, participando de todas as competições que podia. Sempre alegre e prestativo, logo conquistou a simpatia de todos no clube.

Os bons resultados não tardaram a surgir. Mas em 2007 Isaac teve a maior decepção na sua carreira de atleta: por apenas três segundos, perdeu a prova seletiva para os Jogos Parolímpicos de Pequim. "Fiquei muito triste, mas ao mesmo tempo acho que saí fortalecido dessa derrota. Desde 2009 não perdi mais nenhuma prova seletiva", afirma ele, com justificado orgulho.

Josiane Dias e Isaac Ribeiro: dupla vencedora

Em dupla com a atleta Josiane Dias, em 2010 Isaac obteve o quarto lugar no campeonato mundial de remo da Nova Zelândia. Em maio deste ano, a mesma dupla ganhou medalha de bronze na Regata Internacional de Gavirate, na Itália. E em junho passado eles conquistaram a medalha de prata na Copa do Mundo de Belgrado, na Sérvia, o que os qualificou para os Jogos Parolímpicos de Londres. "Estamos entre os seis melhores competidores do mundo na nossa classe esportiva", diz Isaac. "Nosso objetivo agora é a medalha de ouro. O esporte me ensinou que nada é impossível na vida, se a gente persistir e se dedicar com verdade à conquista dos nossos objetivos."

Os Jogos Parolímpicos, este ano em sua 14a edição, começam pouco depois do encerramento dos Jogos Olímpicos. A abertura vai ser no dia 29 de agosto, em cerimônia especial que contará com a presença da rainha da Inglaterra. Vai ser fácil identificar o Isaac entre os 25 atletas da delegação brasileira na cerimônia de abertura: ele vai ser o único atleta a desfilar pedalando uma bicicleta (os outros usarão cadeiras de rodas). Vamos ficar de olho nesses exemplos de superação e torcer muito por todos eles.


Mas, com ou sem medalhas, para mim meu amigo Isaac já ganhou.






domingo, 15 de julho de 2012

Meia volta, volver

Mal lhe deu tempo para desfazer as malas. Com a mesma rapidez com que resolveu retornar ao Brasil depois de dezoito anos vivendo fora do país, minha filha chegou, olhou ao seu redor, refez as malas e deu meia volta volver.

Assim mesmo: pá-puf!

Em menos de dez dias, já tinha acertado tudo: resolveu aceitar uma (boa) oferta de emprego em Toronto, mandou suspender a mudança que havia contratado para trazer suas coisas ao Brasil  e marcou para dali a duas semanas sua passagem de avião de volta ao Canadá.

Atônitos e impotentes, assistimos a este  turbilhão de decisões inesperadas da nossa filha sem poder fazer muita coisa além de ouvi-la, tentar entender suas razões e oferecer nosso carinho incondicional.

Como é que foi mesmo aquele dia da sua chegada ao Brasil, tão ansiosamente esperado por nós? 
O Rio de Janeiro a recebeu de braços abertos, derramando o sol de inverno maravilhosamente acolhedor sobre praias e montanhas. 




No agitado clima da Rio+20, líderes e representantes de mais de 170 países debatiam a questão da sustentabilidade do planeta, índios da Amazônia andavam de metrô com seus cocares de penas coloridas e


corpos seminus, crianças brincavam felizes nas ruas com a suspensão das aulas nas escolas, o trânsito  fluía surpreendentemente tranquilo por toda a cidade, o navio do Greenpeace fazia protestos barulhentos na baía da Guanabara, shows de música animavam as noites da Lapa, aulas de dança afro aqueciam músculos e apaziguavam corações, exposições de arte encantavam nossos sentidos e, como se tudo isso não bastasse, a festa junina em Santa Teresa ainda teve Moraes Moreira comandando o forró. 




O Rio era uma festa. E nós participávamos de tudo, comendo canjica e bebendo quentão com avidez adolescente, celebrando cada minuto de convivência com nossa filha que a vida nos permitia.

Nada fazia sentido. Tudo fazia sentido.

Faz duas semanas que nos despedimos na porta de embarque do aeroporto do Galeão, entre beijos, abraços e lágrimas confusas. Desde então tenho pensado com frequência nas sábias palavras de Gibran Khalil Gibran: 


Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da vida por si mesma.
Vêm atrás de vós, mas não de vós.
E, embora vivam convosco, não vos pertencem.
(...)
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda a sua força
Para que suas flechas se projetem, rápida e para longe.
Que vosso encurvamento na mão do arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como ele ama a flecha que voa,
Ama também o arco que permanece estável.








Crédito da foto dos índios no metrô: AP Photo/Felipe Dana

quinta-feira, 29 de março de 2012

Minha filha está voltando!

Depois de viver dezoito anos fora do Brasil, minha filha finalmente se prepara para voltar ao país em que nasceu. A decisão partiu dela, fruto de reflexão madura, que se estendeu por vários meses. Além de mala e cuia, Bebel traz também muita experiência na bagagem.  Daqui a um mês ela irá embarcar em um avião na cidade de Toronto, Canadá, com destino ao Rio de Janeiro, tendo em mãos somente a passagem de ida.
O périplo internacional da nossa família começou em 1994, quando nos mudamos para a cidade do México, acreditando que ficaríamos só dois anos longe do Brasil. Acabamos ficando catorze. Nossos dois filhos nos acompanharam em alguns momentos. Em outros levaram suas vidas independentes, longe dos nossos olhos, numa longa trajetória pontilhada de incontáveis despedidas e reencontros.
Remexendo nas gavetas, acabo de encontrar esse texto que Bebel escreveu em 1997, quando ela cursava Engenharia em Boston, Estados Unidos, enquanto nós, seus pais, vivíamos do outro lado do mundo, na pequena ilha de Cingapura, Sudeste Asiático.
Hoje, na contagem regressiva dos dias que faltam para seu retorno ao Brasil, a releitura deste texto escrito há quinze anos me faz refletir emocionada sobre a importância da proximidade física com nossas pessoas queridas.


Longe dos meus pais


Cabelo molhado, pé no chão, jantar na cama ao som da TV. Olho para os lados e não há ninguém falando de gripe, de meias, nem de comida na mesa. Minha primeira reação é rir. E rio de mim mesma: deste retrato de uma típica adolescente que mora longe dos pais. No entanto, percebo que meu riso já não carrega a energia de quem conquistou a independência. É um riso meio envergonhado de assumir que eu ainda preciso de colo.

Há mais de dois anos moro sozinha em terras estrangeiras. Meu primeiro ano de “liberdade” me contaminou com a beleza do voar livre e solta. Voei sem medo de altura, sem medo de me perder. Com o tempo, fui criando um medo de voar só, um medo inesperado que brotou junto com o começo de uma vida adulta. De repente, minhas asas estavam pesando toneladas e senti novamente a necessidade de voltar para o aconchego dos braços dos meus pais. Precisava lhes perguntar sobre essa dor nas asas, sobre essa sombra de tristeza que começava a me seguir. Mais do que respostas, eu precisava era da mágica companhia deles. Só que dessa vez eles estavam longe, tão longe, que para chegar até eles e voltar aonde estou daria uma volta ao mundo. Meus pais moram em Cingapura e eu ainda estou me acostumando com a idéia de que todas as vezes em que eu precisar de colo, terei e-mails, cartas e/ou telefonemas.

Cingapura é muito mais do que um país pequenininho perdido na imensidão do continente asiático. É um país que hoje em dia tem duas pessoas maravilhosas caminhando por suas ruas. E, de longe, vivo com a incoerência de meus pensamentos. Meu lado emocional é egoísta e chorão, se sentindo fraco e pobre por não tê-los por perto. Sinto que ainda preciso do apoio diário dos dois para que eu consiga superar a transição para essa nova fase da minha vida. Por outro lado, meu “eu” racional sorri tranquilo e grato por meus pais estarem vivendo uma vida saudável em um país seguro, estável, perto de culturas exóticas e em clima tropical.

Esta vida banhada em saudades ainda me tem de aprendiz. Sei que ninguém consegue se esconder da tristeza da distância, mas também sei que o amor que une uma família vai além do silêncio e da falta do toque. E é de longe que eu choro com eles, que a gente ri e que a gente forma uma família que eu não troco por nada. E é também de longe que eles me passam a energia para eu cuidar de mim mesma… E  já vou secando meus cabelos, colocando meia no pé, apagando a TV, arrumando a cama para uma outra noite de sono… E assim que fecho meus olhos, penso neles abrindo os seus e preparando-se para começar o dia que para mim ainda é amanhã.




domingo, 29 de janeiro de 2012

Irineu, o Amigão da Lagoa



Muito antes da calçada à beira da Lagoa virar um dos pontos mais badalados da Zona Sul carioca, Irineu Ferreira já vendia coco junto ao clube de remo do Botafogo, próximo à Curva do Calombo. "Fui o primeiro vendedor de coco que se instalou aqui na Lagoa", diz ele, com orgulho. "Antes era só na praia que havia coco para comprar."  Desde 1963, Irineu trabalhou na manutenção dos barcos e da garagem do clube, atividade que exerceu por 48 anos até se aposentar no ano passado. Naquele tempo, a avenida Epitacio Pessoa era tão sossegada que na hora do almoço Irineu costumava jogar futebol na pista com os colegas.


Apesar de aposentado, o dia começa cedo do mesmo jeito para Irineu: às quatro da manhã já está de pé, varrendo as folhas das árvores que dão sombra ao clube. Ao nascer do sol, Irineu já está orientando os primeiros remadores que chegam para retirar os barcos da garagem, em alto e bom som:

- Vambora, galera! Vocês estão aí parados esperando o quê? Vamos logo, que tem mais gente chegando!

 Todos sabem que o tom é brincalhão, mas a bronca é para valer - e por isso se apressam, obedientes, para dar início logo às atividades do dia.

Irineu nasceu em Araruama, no dia 15 de dezembro de 1928, numa família de catorze irmãos. Depois que o pai morreu e a mãe se casou de novo, a vida do pequeno Irineu sofreu uma reviravolta radical. Inconformado com a chegada do padrasto, resolveu fugir de casa. Tinha apenas onze anos de idade e nenhuma ideia do que fazer para ganhar a vida sozinho. O menino se virou como pôde: trabalhou em colheita de laranja e algodão, cortou cana, tirou leite de vaca, dormiu em banco de praça. "Teve um dia que eu quase morri amassado por um touro, enquanto dormia num curral", relembra, achando graça na história.

Talvez por ter passado tantas dificuldades é que hoje valorize tanto a pequena casa onde mora, construída por ele mesmo dentro do clube. "Tenho um orgulho danado da minha casa e gosto de deixar tudo arrumado, direitinho", diz Irineu. "Sou eu mesmo quem prepara a minha comida, sei cozinhar de tudo: arroz, feijão, frango assado, peixe, empada, espinafre refogado... Também lavo e passo toda a minha roupa. Um homem que vive sozinho tem que aprender a fazer essas coisas todas." Paz de espírito é um dos elementos que mais preza na vida. É devoto de Nossa Senhora de Aparecida, da qual tem três imagens em casa. Não gosta de bebidas alcoólicas: prefere tomar suco de frutas e água de coco. Brincar o Carnaval, nem pensar: só mesmo na televisão.

Irineu cultiva hábitos simples: gosta de pescar, ver televisão e conversar com os amigos que param para conversar na barraca do coco. "Conheci muita gente famosa por aqui, como a Regina Casé, o Tony Ramos, o Ney Latorraca, o Agildo Ribeiro...", conta satisfeito. "Outro dia quem tomou água de coco na minha barraca foi o Eike Batista, que vem sempre correr aqui na Lagoa."

Mas Irineu nem sempre esteve cercado de amigos. A partir do dia em que fugiu de casa, deixando a mãe e os irmãos para trás, teve que enfrentar todo o tipo de adversidades sozinho. Como tinha grande força física, quis ser boxeador e chegou a ganhar "uns trocados" com o esporte. Também tentou a sorte no futebol - esteve no Fluminense para competir por uma vaga de goleiro, mas logo desistiu.  Aos 35 anos de idade, Irineu se cansou da solidão e resolveu procurar de novo a família, que ele não via desde criança.  Foi nesse momento que sua vida deu uma nova guinada radical - só que, desta vez,  foi para melhor. A história deste reencontro é digna de um filme e Irineu a conta com um sorriso largo, carregado de emoção: "Eu não via minha irmã gêmea, Irene, desde que tínhamos onze anos de idade.  Um dia soube onde ela morava e a fiquei seguindo durante três dias - na rua, no ônibus... Por onde ela ia, eu ia atrás. Até que um dia ela veio falar comigo, zangada por estar sendo seguida por um estranho!" Depois que Irineu se identificou, houve uma sucessão de grandes emoções familiares.

Irene levou o irmão para reencontrar-se com a mãe, dona Berenice, que morava em São Pedro da Aldeia. "Minha mãe era vidente, sabia de tudo o que se passava com todos os filhos - coisas certas e erradas", revela o filho, com grande admiração. Em poucos dias, elas planejaram uma festa-surpresa, que reuniria os irmãos, além de grande quantidade de cunhados e sobrinhos de quem Irineu nem sequer suspeitava da existência. "No meio da festa, quando já estavam todos ali reunidos, minha mãe mandou parar o som e anunciou a todos que aquele convidado que ninguém havia reconhecido, ali quieto num canto, era eu! Foi aí que meus irmãos vieram me abraçar e eu não consegui mais parar de chorar naquela noite".

A partir daquele reencontro com a família, Irineu mudou de vida. Foi nessa época que ele começou a trabalhar no Botafogo. A princípio, Irineu pensava que seria remador, mas o clube tinha outros planos. "Eu era muito forte naquele tempo e sem querer acabei quebrando uns remos, que eram de madeira", conta Irineu. "Por causa disso o pessoal do clube achou que, em vez de remar, eu deveria trabalhar na manutenção dos barcos. E deu certo!


Deu tão certo, que hoje é difícil para qualquer pessoa que frequente o Botafogo pensar naquele clube de remo sem a presença constante do Irineu, organizando espaços, distribuindo ordens para todo o mundo. Hoje existem na Lagoa três barcos skiff batizados com o nome de "Irineu": dois no Botafogo e um no Vasco da Gama.

Além disso, acima do portão da garagem onde são guardados os barcos do Botafogo, existe uma placa com o nome do homenageado, "Irineu Ferreira", inaugurada em dia de grande festa no clube.

- Irineu, posso tomar uma água de coco agora e te pagar amanhã? - pergunta Marilia Nutti, aluna da escola de remo do clube.

- Claro que pode, minha filha. Você sabe que mora no meu coração!

Marilia sorri e comenta, enquanto toma o seu coco gelado: "O Irineu é um grande amigo. Aprendi a admirá-lo ainda mais depois que meu filho Victor esteve entre a vida e a morte por causa de uma grave infecção quando tinha poucos meses de vida. O menino foi curado com água de coco, que precisou tomar todos os dias durante mais de seis meses. O Irineu sempre nos ajudou nessa época difícil e, quando eu não podia vir até o clube para comprar o coco, muitas vezes ele se oferecia para levá-lo até a nossa casa. Meu filho, que hoje tem vinte anos, adora o Irineu e desde pequeno o chama de Amigão do Coco."

Além de "Amigão do Coco", Irineu também deveria ser conhecido como o "Amigão da Lagoa", pois além da movimentação dos barcos e remos, está sempre atento à limpeza da água, aos peixes e às aves que vivem ali. Não admite que se jogue lixo em lugar algum, a não ser na lixeira. "A Lagoa está muito melhor hoje do que quando vim para cá, há mais de quarenta anos. Naquele tempo de vez em quando havia mortandade de peixes e um cheiro horrível se espalhava por toda a região. Agora, não: a água está mais limpa, os peixes já não morrem tanto. Quando vejo alguém jogando qualquer coisa na Lagoa, eu dou bronca mesmo: faço a pessoa voltar e catar o lixo que deixou ali. Se todo o mundo fizer isso, a nossa Lagoa vai ficar cada vez melhor e mais bonita."