quarta-feira, 4 de maio de 2011

O teatro perseguido dos Moustache Brothers

Viagem a Myanmar - parte 6


- Assim que eu chegar a Mandalay quero assistir a um teatro de marionetes, daqueles bem tradicionais! - exclamei animada, achando-me muito esperta com a programação cultural que havia preparado para os próximos dias da viagem pelo interior de Myanmar.


- Se eu fosse você, não ficaria tão entusiasmada - disse minha amiga birmanesa, jogando água fria nos meus planos de viagem. - Na verdade, esses teatrinhos de marionetes são feitos para agradar turistas estrangeiros e não tem tanta graça assim. Muito mais empolgante é o show de comédia política dos Moustache Brothers. Este, sim, você tem que ver de qualquer maneira quando estiver em Mandalay!




Lembrei-me de ter lido alguns dias antes um artigo sobre esse pequeno grupo de comediantes.  O nome do grupo ("Irmãos Bigode") é uma alusão aos vistosos bigodes ostentados pelos três integrantes principais. Eles tem sido duramente perseguidos pelo governo por causa das críticas que fazem em seus shows contra a ditadura militar que controla o país desde 1962.


Minha amiga prosseguiu:


- Mas tenha muito cuidado na hora de contratar um táxi para ir a este show, porque nem todos os motoristas tem coragem de parar na porta da casa deles, com medo de serem perseguidos pelo governo e perderem a licença para trabalhar. Peça ao motorista para descer do carro a uma quadra dali. É mais prudente e seguro para todos.


Nem preciso dizer que, com uma introdução dessas, eu já estava mais do que convencida: a primeira coisa que faria quando chegasse a Mandalay seria assistir ao show dos Moustache Brothers. Os marionetes poderiam esperar.


E foi assim que, toda empolgada e com espírito combativo em prol da liberdade de expressão, saí à procura de um taxista destemido pelas ruas de Mandalay. Ao contrário do que esperava, foi bem fácil encontrar um motorista discreto e disposto a me levar até a porta do teatro, sem necessidade de negociações. 


O que me deixou  preocupada foi o tamanho absurdamente diminuto do táxi, que mais parecia um daqueles carrinhos bate-bate de parque de diversões. Era provavelmente um prenúncio de que aquela noite seria  divertida, mas sem as proporções épicas que eu havia imaginado. 



O "teatro" dos Moustache Brothers fica na garagem de uma casa modesta, num bairro pacato de Mandalay, onde vive parte da família dos comediantes. O ambiente é esteticamente confuso, mas acolhedor em sua simplicidade. O palco é um estrado ao rés do chão, sem cortinas, contra uma parede decorada com marionetes e cheia de placas penduradas, com frases soltas em inglês: "Most Wanted" ("Os Mais Procurados"), "Black List" ("Lista Negra"), "Three Times Arrested" ("Três Vezes Preso"), "Under Surveillance" ("Sob vigilância"), "CIA", "KGB". Essas placas são usadas durante o show pelo apresentador Lu Maw (um dos três Moustache Brothers) para sublinhar a importância de alguma ideia ou piada contada por ele. 




Na entrada da casa, cadeiras de plástico empilhadas umas sobre as outras aguardam a chegada dos turistas, cujo número é sempre imprevisível, pois o grupo não faz reservas nem tem permissão do governo para cobrar ingressos. Antes do início do show, somos convidados a fazer uma pequena doação em dinheiro, com o que todos concordamos de boa vontade. Sabemos que esta é a única fonte de renda daquela família de treze artistas, que foi proibida pelo governo de Myanmar de trabalhar no que fazia há três gerações: o a-nyeint pwe, uma forma tradicional de teatro saltimbanco, em que os comediantes cantam, dançam e fazem rir, viajando pelas pequenas cidades e povoados do interior.





A gota dágua que fez os Moustache Brothers entrarem para a lista negra do governo foi um show que fizeram em 1996 na residência da líder oposicionista e Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, onde não faltaram piadas sobre a ditadura militar. 


"Venham para Myanmar, mas por favor não roubem ninguém aqui", dizia uma dessas piadas. "´É que o governo não gosta de competição." O governo, obviamente, não achou a menor graça e despachou para a prisão o líder do grupo, Par Par Lay, condenado a sete anos de trabalhos forçados. Mais tarde, outro membro do grupo, Lu Zaw, também foi preso. Os protestos da comunidade internacional logo começaram a surgir, mas foi somente em 2002 que os comediantes foram liberados. 




Durante todo esse tempo, coube ao único dos três integrantes do grupo que não havia sido preso, Lu Maw, a dura tarefa de reinventar o trabalho dos Moustache Brothers para garantir o sustento da família. E o show, apesar de todas as dificuldades, continuou com a participação das esposas e outros familiares, com sketches de dança, improviso, comédia e sátira política, podendo ser visto apenas por turistas estrangeiros. Na garagem dos Moustache Brothers, cidadãos de Myanmar não entram, sob pena de perderem seus empregos ou serem enviados à prisão.




Confesso que, em termos de conteúdo, esperava um pouco mais deste show. Falta sutileza no humor, sobram bordões previsíveis. Os personagens são caricatos e seus sorrisos, forçados. Mas, também, pudera: há pelo menos quinze anos, aquele grupo de saltimbancos repete todas as noites os mesmos trejeitos e piadas, em troca de  aplausos incertos, doações magras e um pouco de esperança de que sua luta pela liberdade seja fortalecida pela cumplicidade do mundo lá fora.


Com todo seu cansaço e bigodes tristes, o grupo nos toca profundamente o coração. Não por causa do show em si, mas pelo fato extraordinário desses poucos homens e mulheres representarem a única voz com coragem de se opor à opressão da ditadura militar daquele país, a despeito de todos os riscos e do sofrimento por que já passaram. 

Um comentário:

Anônimo disse...

Querida Monica : você e muito corajosa !Não e todo mundo que se mete num beco de Miamar. mas nesses becos da vida e que a gente as vezes encontra coisas especiais como teatros , bermudas , blusinhas do Botafogo e tópicas da hora para os meninos. Um beijo Climene