terça-feira, 24 de maio de 2011

Myanmar, Batman e o mapa do crioulo doido

Cheia de otimismo, resolvo ir ao correio para enviar um livro de presente a uma amiga que mora na cidade de Yangon, antiga capital de Myanmar.

- Myanmar? Onde fica esse país? - pergunta-me o rapaz, educado e solícito, que me atende no balcão. Com os olhos pregados na tela do terminal de computador, o rapaz procura, intrigadíssimo, o nome daquele lugar estranho, no meio da lista dos 192 países existentes no mundo.
Antes que eu tenha tempo de lhe responder qualquer coisa, o rapaz encontra na lista o nome de Myanmar e exclama, animado:
- Já sei! É perto do país do Batman!
- País do Batman?!
- É! Acho que é o Batman, sim... Ou será aquele outro morcego?
- Que morcego?...
De repente começo a duvidar da sanidade mental daquele funcionário público. Penso que talvez não tenha sido uma boa ideia confiar meu precioso livro aos cuidados do correio nacional.
O rapaz continua, em tom decisivo:
- Ah! Agora me lembro, não é o Batman: é aquele outro, que mora na Tunísia!
- Tunísia?! - minha voz soa como um eco, já perdido naquele mapa geográfico surreal.
- Não... não é Tunísia que eu quero dizer... é aquele outro lugar que também começa com "T"... aquele onde vive o Conde Drácula!
- Seria a...Transilvânia?... - arrisco o palpite, já embarcando na loucura daquele diálogo.
- É, isso mesmo! Myanmar não fica perto dali?
- Bem, mais ou menos. A Transilvânia fica na Europa e Myanmar fica na Ásia...
- Ah, sei...
- Você tem certeza de que esse livro vai chegar na casa da minha amiga?
- Tenho. Pode ficar tranquila.
- Posso mesmo?
- Sessenta reais, por favor.

Suspiro fundo e pago a conta. Tenho a impressão de que só mesmo o Batman será capaz de fazer meu livro chegar ao seu destino final.

PS: Juro que esse diálogo não foi inventado. Aconteceu ontem à tarde, na agência dos correios da Praça N.Sra. da Paz, em Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro.

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19/julho/2011

Mal posso acreditar: menos de um mês após minha ida ao correio, o livro despachado no Rio de Janeiro chegou ao seu destino final em Yangon, Myanmar. Minha amiga Myo Nwe ficou feliz com o presente surpresa e me enviou esta simpática mensagem por e-mail:   


 Yestarday I arrived back Yangon, I received your book and I want to say very very thank you for your photo book , but I know like that saying is not enough for my feeling. When I saw this book I want to cry and I miss you very very much. Nothing can show my feeling. Really I want to talk only one word is" I love you very very much and thank you very very much Ma Thit Sar and Ko Tun."

Como é bom ter amigos por esse mundo afora!


segunda-feira, 9 de maio de 2011

Esquisitices de Myanmar-4

Viagem a Myanmar - parte 10 (última da série)
E finalmente termina aqui a lista das treze "esquisitices" da cultura de Myanmar que mais me chamaram a atenção nesta viagem.


10)  Remo com pé


Na região do lago Inle (sudeste de Myanmar), os pescadores desenvolveram um tipo de remada único no mundo: eles utilizam um pé para impulsionar o "remo" (na verdade, apenas um simples tronco de madeira), equilibrando-se na canoa sob  a outra perna. O lago Inle é extenso, mas pouco profundo, o que facilita bastante esta forma sui generis de propulsão de barco.



11)  Mulheres Padaung

As mulheres de pescoço comprido da tribo Padaung são uma atração turística deprimente da região do Lago Inle. Tirei esta foto com uma mistura de fascinação, pena e vergonha de mim mesma, por contribuir de alguma forma para a exploração cruel dessas mulheres. Por outro lado, penso que a divulgação dessa imagem talvez possa contribuir para a conscientização das pessoas para combater essa prática tão esquisita quanto abominável.Tomara!
Além de posarem para fotos,  as mulheres Padaung trabalham também como tecelãs num dos ateliês que visitei à beira do lago. Os anéis de metal começam a ser colocados no pescoço das meninas a partir dos 5 ou 6 anos de idade. À medida que elas crescem, mais anéis são acrescentados, esticando cada vez mais o comprimento do pescoço, até o número máximo de 24 anéis. Tive a oportunidade de segurar nas mãos um conjunto desses anéis e posso atestar: são pesadíssimos. Fico profundamente triste só de pensar nas meninas Padaung que jamais poderão praticar um esporte ou dançar com a leveza de uma criança "normal". Resta-me o consolo de saber que o número das mulheres de "pescoço comprido" tem diminuído progressivamente e que hoje existem menos de 180 delas no mundo. Pelo menos foi o que me garantiram lá.

12) Filas colossais para comprar gasolina

A primeira vez que vi um amontoado de pessoas ao lado de motocicletas paradas, pacientemente perfiladas em filas sêxtuplas, dando voltas em quarteirões, fiquei sem entender o que estava acontecendo. Para quem vive em Myanmar, esta é uma visão corriqueira, parte integrante da vida cotidiana. Trata-se da fila para comprar gasolina, cuja comercialização é controlada pelo governo. Aqueles que tem mais dinheiro, contratam vários motociclistas desocupados (homens, mulheres ou até crianças) para ficarem horas na fila e encherem o tanque de suas motos com o precioso líquido, que em seguida lhes é vendido ao preço tabelado. Para os que não dispõem desses "profissionais de fazer fila" e precisam encher o tanque do carro, a saída é comprar gasolina no mercado negro, que funciona abertamente pelas ruas e estradas de todo o país. Paga-se mais caro, mas em compensação obtém-se o luxo de encher o tanque de uma só vez, sem perder tempo nas filas intermináveis.

13) Longyi

Finalmente, a "esquisitice" cultural de Myanmar de que eu mais gosto: o uso do longyi por quase todos os homens e mulheres. O traje tradicional dos birmaneses é uma saia comprida, feita em tecido de algodão. O modelo é simples, igual para todo o mundo: costuram-se as extremidades do corte do tecido, faz-se um cós... e é só. Está pronto o longyi. Para vesti-lo, os homens amarram o pano em volta da cintura com um nó simples, atado bem na frente do corpo. Já as mulheres, em vez de fazerem o nó, empurram uma ponta do pano para dentro do cós, em um dos lados da cintura. 

Tive a sorte de mandar fazer um longyi para mim nesta viagem. Se não consegui passar por uma birmanesa típica, pelo menos me senti maravilhosamente feminina, rodeando minha nova saia para lá e para cá, tentando imitar a malemolência natural e sedutora das mulheres de Myanmar.





PS: Aqui chego ao final da série de textos sobre Myanmar. Desconfio que meus amigos já estão cansados de me ouvir falar sobre esta cultura fascinante. Juro que só volto a tocar no assunto depois da próxima viagem para lá!




Esquisitices de Myanmar-3

Viagem a Myanmar - parte 9
"Esquisito" é pouco para a gente definir certos aspectos da cultura de Myanmar, mas é justamente isso que a torna tão fascinante. Aqui vão mais três "esquisitices" da série de treze que selecionei.


7)  Cama pública


De vez em quando, num barzinho de beira de estrada ou à porta de um pequeno restaurante nos arredores de alguma cidade, a gente vê umas camas feitas de esteira, com travesseiro e tudo, à espera de viajantes cansados que queiram tirar uma sonequinha antes de prosseguir viagem. Não há nenhum cartaz explicativo, ninguém tomando conta nem cobrando ingresso. Todo o mundo em Myanmar já sabe que essas camas são públicas e podem ser utilizadas por quem quer que seja - basta que esteja a fim de dar uma esticada no corpo ali mesmo. Muitas vezes as camas são duplas (como a da foto) e duas pessoas que nunca se viram na vida podem se deitar nelas e dormir lado a lado, sem o menor constrangimento. Tudo muito natural!

8)  Chá para os saudáveis e café para os enfermos

Como em quase todos os países asiáticos, o chá é, de longe, a bebida mais consumida pela população de Myanmar. O café também é apreciado por muitos, mas como se trata de um excitante natural pelo seu alto teor de cafeína, em geral as pessoas procuram tomar essa bebida quando se sentem enfraquecidas ou doentes. Como resultado, em Myanmar as pessoas associam o aroma do café a doenças e o do chá a situações saudáveis - exatamente o contrário do que fazemos daqui deste lado do mundo.

9)  Ouro com banana


"Bem vindos à Terra do Ouro!", exclamam os cartazes nos portões de chegada dos aeroportos de Myanmar. A expressão descreve bem a imagem impactante que a gente tem do país desde os primeiros momentos após a aterrisagem: é ouro brilhando para todos os lados, na superfície de uma infinidade de templos, pagodes e estupas. Grande produtor de ouro, Myanmar nunca economizou seu uso.  Tão incrível quanto a ubiquidade do nobre metal é a atitude blasée da população diante de tanto brilho e riqueza. Além de ser usado na arquitetura e na decoração, o ouro também é tido como panacéia infalível para os males que afetam o corpo humano. Esfregar folha de ouro na pele, por exemplo, aumenta a circulação e estimula a energia vital. Há mães que acrescentam uma pequena quantidade de ouro no alimento dos filhos para fortificá-los. Nos dias de 
muito calor, tem até gente que come ouro com banana para se "refrescar".


(Continua no próximo blog)

Esquisitices de Myanmar-2

Viagem a Myanmar - parte 8
Aqui vão mais três "esquisitices" da cultura de Myanmar que me impressionaram bastante nesta viagem:

4)  Câmbio de dólar? Só se as notas forem novinhas em folha!

Cometi a imprudência de não comprar kyats (pronuncia-se "tchats") antes de chegar a Myanmar. Quase estrago minha viagem por causa da falta de dinheiro local no bolso. Mesmo tendo lido todas as dicas de viajantes que me caíam às mãos antes da viagem, dois detalhes de importância vital me passaram completamente despercebidos. Primeiro: em Myanmar não existem caixas eletrônicos (nenhum mesmo). Segundo: lá não existem cartões de crédito ou débito (idem).
Felizmente eu tinha levado comigo alguns dólares para caso de emergência ou imprevisto. Assim que desembarquei do avião em Yangon e me dei conta da minha situação de quase total mendicância em moeda local, fui direto a uma casa de câmbio, acreditando que sairia de lá em questão de minutos com o problema resolvido. Ledo engano. Cada nota de dólar que eu apresentava no balcão era submetida ao escrutínio desconfiado de dois ou três funcionários da casa. Para meu desespero, ao final do exame de cada cédula, quase sempre vinha o veredicto absurdo: "Não podemos trocar esta nota porque ela não está limpa". "Como assim, não está limpa?" E os funcionários apontavam para a marca da dobra no meio da cédula ou um sinal qualquer que indicasse que já havia circulado no mercado. Era difícil acreditar, mas eles só aceitariam meus dólares se as cédulas estivessem com aspecto de novas em folha.  Logo percebi que qualquer tentativa de diálogo seria vã.  Em Myanmar o câmbio era feito dessa forma há décadas e um funcionário quis saber se eu não havia sido informada disso antes de viajar. Tive vontade de responder: "Não, meu senhor. E, mesmo se alguém tivesse me alertado sobre isso, eu jamais acreditaria." Mas achei prudente não comentar nada.  Diante da toda-poderosa burocracia local, comecei a contar tristemente os kyats que me couberam em troca das poucas cédulas de dólar "limpas" que havia trazido na bolsa. Ainda bem que os hotéis e os passeios já estavam pagos. Com o parco dinheirinho de que dispunha, uma coisa era certa: nas duas semanas seguintes teria que limitar meus gastos ao absolutamente essencial. Mas tudo bem. Eu estava tão feliz com esta viagem sonhada há tantos anos, que nada - nem mesmo a falta de dinheiro - poderia atrapalhar meu entusiasmo.

5) Três viradas de ano novo em um só


Os birmaneses celebram três passagens de ano novo diferentes. O primeiro réveillon segue o calendário gregoriano utilizado por quase todo o mundo ocidental (inclusive nós, aqui no Brasil), com base na data do nascimento de Jesus Cristo. Mas é o segundo réveillon que agita todo o país, em meados de abril: é o Thingyan, Festival das Águas. Durante dez dias seguidos, as pessoas vão às ruas para jogar água umas nas outras, numa grande farra nacional. Esta festa celebra a virada do calendário "lunisolar" de Myanmar, uma complicada visão astronômica, que leva em conta simultaneamente as fases da lua e o movimento dos planetas em torno do sol. Por este calendário, no último dia 18 de abril Myanmar entrou no ano de 1373. A terceira virada de ano novo é a do calendário budista, que acontece no período correspondente ao nosso mês de maio. Neste calendário, a contagem dos anos tem início no ano da morte de Buda (543 a.C.). Os birmaneses acabam de celebrar, portanto, a chegada do ano budista de 2555. Assim sendo, as folhinhas em Myanmar registram a passagem do tempo em três diferentes contagens de anos: 1373, 2011 e 2555. Simples, não?

6) Mãos inglesa e americana na mesma via ao mesmo tempo
Nos tempos coloniais, a mão das ruas e estradas seguia o sistema inglês - ou seja, os veículos tinham a direção no lado direito e trafegavam no lado esquerdo da pista. Recentemente, entretanto, o governo de Myanmar resolveu mudar o sistema da mão inglesa para a mão americana,  para distanciar-se ainda mais do modelo colonizador. Como esta mudança ocorreu por decreto e passou a vigorar da noite para o dia, não houve tempo hábil para alterar a frota de veículos do país e adaptá-los ao novo sistema. Resultado: carros, ônibus e caminhões com a direção do lado direito (como os veículos ingleses) continuaram a trafegar pelas ruas e estradas (agora com mão americana) como se aquela mudança repentina fosse a coisa mais natural do mundo. Só que havia uma dificuldade adicional para os motoristas: fazer ultrapassagens sem qualquer visibilidade da pista no sentido contrário. Tornou-se, então, essencial a presença do co-piloto para orientar o motorista na hora da ultrapassagem, para se evitarem colisões frontais: "Não, agora não... espera só um pouquinho...", grita o co-piloto para o motorista, com metade do corpo para fora da janela. "Vai... peraí... agora dá! Vai rápido!"

Como se toda esta loucura não bastasse, os novos carros importados são agora os que tem a direção do lado esquerdo, apropriados ao sistema da mão americana.

Ou seja, em Myanmar os veículos convivem democraticamente com todas as regras do mundo ao mesmo tempo - contando sempre, é claro, com a proteção do Buda todo poderoso.

(Continua no próximo blog)


sábado, 7 de maio de 2011

Esquisitices de Myanmar-1

Viagem a Myanmar - parte 7
Myanmar tem uma quantidade enorme de esquisitices culturais que fascinam e, ao mesmo tempo, intrigam a mente de qualquer visitante estrangeiro. Fiz uma lista das treze esquisitices que mais me chamaram a atenção.

1) Tanaka


Para o visitante estrangeiro, talvez a mais visível de todas seja a pasta de tanaka, feita com casca de árvore e água, que os birmaneses aplicam na face como um tipo de maquiagem. Quase toda a população - principalmente mulheres e crianças - espalha essa pasta amarelada pelo rosto, criando desenhos deliberadamente destacados da cor da pele, sem se preocuparem muito com  a perfeição dos traços.  A ideia é deixar tudo meio borrado mesmo. A pasta é feita em casa, bem na hora de ser usada.
Sobre uma base redonda de pedra, eles esfregam a casca da árvore até obterem um pó bem fino, parecido com talco. Aos poucos, eles acrecentam água ao pó, até formarem uma pasta, que espalham imediatamente pelo rosto com a ponta dos dedos. Isso tem que ser feito com rapidez, porque a pasta seca em dois tempos. Em geral, a maquiagem consiste de duas grandes bolotas nas bochechas, um traço ao longo do nariz e uma camada na testa, com pequenas variações.
O efeito criado é desconcertantemente teatral, como um tipo de máscara bufa. No começo a gente fica meio atordoada, sem saber como interpretar aquele adorno facial. Seria bonito? Feio? Cômico? Divertido? Ou simplesmente diferente? Mas são tantos os rostos pintados à nossa volta, que logo nos acostumamos com eles e nos deixamos cativar pela beleza dos sorrisos e olhares que chegam até nós através da pasta amarela.


2) Nomes próprios só de pessoas, não de famílias


Não existem nomes de família em Myanmar, apenas nomes próprios de indivíduos.  Pais, filhos, casais, irmãos ou avós possuem nomes completamente diferentes uns dos outros. Por isso é impossível a gente identificar pelos nomes os que pertencem à mesma família.  Os nomes próprios podem ser composto de dois, três ou mais nomes, sendo que o primeiro deles indica o dia da semana em que aquela pessoa nasceu. Por exemplo, todos sabem que alguém cujo nome comece com "Aung" nasceu num domingo. Se o nome  for "Thin", é porque nasceu numa sexta-feira. E assim por diante. Na cultura de Myanmar, em que a astrologia é fator determinante em quase todas as tomadas de decisão, esta informação é preciosíssima.

3) Oito dias na semana

Em Myanmar, a semana tem oito dias, em vez de sete. Entretanto, o tempo transcorrido entre o primeiro e o último dia é exatamente o mesmo que o do nosso calendário. É que o dia que fica no meio da semana (correspondente à nossa quarta-feira) se subdivide em duas partes distintas: a que vem antes do meio-dia (quarta-feira de manhã) e a que vem depois do meio-dia (quarta-feira de tarde). Cada dia da semana corresponde a um animal diferente, com suas características e tendências astrológicas. O animal das duas "quartas-feiras" é o elefante, representado na parte da manhã com as presas de marfim e, na parte da tarde, já sem elas.


(Continua no próximo blog)


quarta-feira, 4 de maio de 2011

O teatro perseguido dos Moustache Brothers

Viagem a Myanmar - parte 6


- Assim que eu chegar a Mandalay quero assistir a um teatro de marionetes, daqueles bem tradicionais! - exclamei animada, achando-me muito esperta com a programação cultural que havia preparado para os próximos dias da viagem pelo interior de Myanmar.


- Se eu fosse você, não ficaria tão entusiasmada - disse minha amiga birmanesa, jogando água fria nos meus planos de viagem. - Na verdade, esses teatrinhos de marionetes são feitos para agradar turistas estrangeiros e não tem tanta graça assim. Muito mais empolgante é o show de comédia política dos Moustache Brothers. Este, sim, você tem que ver de qualquer maneira quando estiver em Mandalay!




Lembrei-me de ter lido alguns dias antes um artigo sobre esse pequeno grupo de comediantes.  O nome do grupo ("Irmãos Bigode") é uma alusão aos vistosos bigodes ostentados pelos três integrantes principais. Eles tem sido duramente perseguidos pelo governo por causa das críticas que fazem em seus shows contra a ditadura militar que controla o país desde 1962.


Minha amiga prosseguiu:


- Mas tenha muito cuidado na hora de contratar um táxi para ir a este show, porque nem todos os motoristas tem coragem de parar na porta da casa deles, com medo de serem perseguidos pelo governo e perderem a licença para trabalhar. Peça ao motorista para descer do carro a uma quadra dali. É mais prudente e seguro para todos.


Nem preciso dizer que, com uma introdução dessas, eu já estava mais do que convencida: a primeira coisa que faria quando chegasse a Mandalay seria assistir ao show dos Moustache Brothers. Os marionetes poderiam esperar.


E foi assim que, toda empolgada e com espírito combativo em prol da liberdade de expressão, saí à procura de um taxista destemido pelas ruas de Mandalay. Ao contrário do que esperava, foi bem fácil encontrar um motorista discreto e disposto a me levar até a porta do teatro, sem necessidade de negociações. 


O que me deixou  preocupada foi o tamanho absurdamente diminuto do táxi, que mais parecia um daqueles carrinhos bate-bate de parque de diversões. Era provavelmente um prenúncio de que aquela noite seria  divertida, mas sem as proporções épicas que eu havia imaginado. 



O "teatro" dos Moustache Brothers fica na garagem de uma casa modesta, num bairro pacato de Mandalay, onde vive parte da família dos comediantes. O ambiente é esteticamente confuso, mas acolhedor em sua simplicidade. O palco é um estrado ao rés do chão, sem cortinas, contra uma parede decorada com marionetes e cheia de placas penduradas, com frases soltas em inglês: "Most Wanted" ("Os Mais Procurados"), "Black List" ("Lista Negra"), "Three Times Arrested" ("Três Vezes Preso"), "Under Surveillance" ("Sob vigilância"), "CIA", "KGB". Essas placas são usadas durante o show pelo apresentador Lu Maw (um dos três Moustache Brothers) para sublinhar a importância de alguma ideia ou piada contada por ele. 




Na entrada da casa, cadeiras de plástico empilhadas umas sobre as outras aguardam a chegada dos turistas, cujo número é sempre imprevisível, pois o grupo não faz reservas nem tem permissão do governo para cobrar ingressos. Antes do início do show, somos convidados a fazer uma pequena doação em dinheiro, com o que todos concordamos de boa vontade. Sabemos que esta é a única fonte de renda daquela família de treze artistas, que foi proibida pelo governo de Myanmar de trabalhar no que fazia há três gerações: o a-nyeint pwe, uma forma tradicional de teatro saltimbanco, em que os comediantes cantam, dançam e fazem rir, viajando pelas pequenas cidades e povoados do interior.





A gota dágua que fez os Moustache Brothers entrarem para a lista negra do governo foi um show que fizeram em 1996 na residência da líder oposicionista e Prêmio Nobel da Paz Aung San Suu Kyi, onde não faltaram piadas sobre a ditadura militar. 


"Venham para Myanmar, mas por favor não roubem ninguém aqui", dizia uma dessas piadas. "´É que o governo não gosta de competição." O governo, obviamente, não achou a menor graça e despachou para a prisão o líder do grupo, Par Par Lay, condenado a sete anos de trabalhos forçados. Mais tarde, outro membro do grupo, Lu Zaw, também foi preso. Os protestos da comunidade internacional logo começaram a surgir, mas foi somente em 2002 que os comediantes foram liberados. 




Durante todo esse tempo, coube ao único dos três integrantes do grupo que não havia sido preso, Lu Maw, a dura tarefa de reinventar o trabalho dos Moustache Brothers para garantir o sustento da família. E o show, apesar de todas as dificuldades, continuou com a participação das esposas e outros familiares, com sketches de dança, improviso, comédia e sátira política, podendo ser visto apenas por turistas estrangeiros. Na garagem dos Moustache Brothers, cidadãos de Myanmar não entram, sob pena de perderem seus empregos ou serem enviados à prisão.




Confesso que, em termos de conteúdo, esperava um pouco mais deste show. Falta sutileza no humor, sobram bordões previsíveis. Os personagens são caricatos e seus sorrisos, forçados. Mas, também, pudera: há pelo menos quinze anos, aquele grupo de saltimbancos repete todas as noites os mesmos trejeitos e piadas, em troca de  aplausos incertos, doações magras e um pouco de esperança de que sua luta pela liberdade seja fortalecida pela cumplicidade do mundo lá fora.


Com todo seu cansaço e bigodes tristes, o grupo nos toca profundamente o coração. Não por causa do show em si, mas pelo fato extraordinário desses poucos homens e mulheres representarem a única voz com coragem de se opor à opressão da ditadura militar daquele país, a despeito de todos os riscos e do sofrimento por que já passaram.