quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Minha cabeça fugiu!

Daqui a quatro dias meu pai faz 90 anos.

De manhã cedo dou uma passada no apartamento dele, só para ver se está tudo em ordem. Entro na sala e encontro meu pai sentado no velho sofá, imóvel. Não há ninguém por perto, mas ele parece confortável no silêncio.

"Bom dia, papai!"

Com certo esforço, ele se vira devagar e sorri quando me vê:  "Oi, minha filha!"

Sento-me a seu lado e puxo a conversa de sempre: "Dormiu bem hoje?" Ele ergue os ombros, como se a banalidade do assunto não justificasse resposta.

"E o jornal? Já leu as notícias?"  O calhamaço de papel continua ali em cima da mesa,  ainda dobrado do jeito como foi entregue à porta. Os olhos de meu pai passeiam indiferentes pelas manchetes do dia.  Mais silêncio.

Tento alegrá-lo: "Está todo o mundo animado para vir à sua festa de aniversário!" Sei que me ouve e o assunto lhe interessa, mas continua calado. Resolvo então repetir a grande notícia familiar, já tantas vezes anunciada: "Todos os seus quatro netos vão estar aqui para festejar o grande dia com você!"

De repente algo estranho acontece no olhar do meu pai. Percebo nele uma faísca de vitalidade nervosa, como se quisesse me contar um segredo importante. Chego mais perto para não perder a chance de compartilhar este raro momento de intimidade. Meu pai me olha fixo nos olhos e confidencia:

"Minha cabeça fugiu!"

Junto com a cabeça, fugiram também lembranças de alguns dos momentos mais preciosos dos 90 anos de existência daquele homem que, nascido em Belém do Pará, mudou-se aos 17 anos para o Rio de Janeiro para estudar Medicina.  Tento avaliar o que restou impresso na memória de tantas coisas vividas - o casamento com minha mãe, o nascimento das duas filhas, o trabalho no hospital, a chegada dos netos. Quando se aposentou, resolveu se dedicar ao estudo da mitologia grega, apenas pelo prazer de ler histórias e desvendar as ramificações absurdas da imensa árvore genealógica das divindades do Olimpo, muitas das quais ele conhecia de cor.

Agora,  às vésperas de completar 90 anos, meu pai não consegue visualizar as ramificações de uma  árvore genealógica bem menos complicada que a dos deuses gregos: a que ele próprio plantou, aqui na terra dos homens.

Um fato recente o deixa perplexo:  de repente, sem qualquer aviso prévio, os nomes dos quatro netos desapareceram de sua memória. Puf! Simplesmente sumiram. Por mais que se esforce, não consegue se lembrar do nome de nenhum deles.

Vou buscar fotos antigas em portarrretratos que estão espalhados pelo apartamento e as coloco sobre a mesa à sua frente. Quatro rostinhos, captados em diversas épocas e lugares por câmeras fotográficas da era pré-digital, sorriem para ele. Aos poucos, os nomes dos quatro netos recobram o lugar que lhes é de direito, na cabeça "fujona" do avô: Flavio, Isabel, Michael, Alice.

A velhice é um  mundo estranho.

Vai ser bom celebrar os 90 anos do meu pai, com a família reunida.