sábado, 11 de dezembro de 2010

A fartura de Marina

Hoje cedo, quando ajeitava as coisas na minha sala, peguei distraída o livro Passageira em Trânsito da Marina Colasanti e o abri numa página qualquer. Tive vontade de rezar quando meus olhos caíram no pequeno poema Fartura - curto, simples, belo:


Agradeço, Senhor,
as três orquídeas roxas
no jardim
e as mãos do meu amor
nas minhas coxas.



Lembrei-me das flores do meu jardim que estão me esperando para serem regadas. Olhei para minhas coxas saudáveis, neste corpo que dentro de poucas semanas irá fazer sessenta anos. Pensei nas mãos experientes e queridas do meu amor.

Fartura é isso. 

Obrigada, Marina.

sábado, 6 de novembro de 2010

Rir para não chorar

Quando o mundo parece estar desabando sobre a nossa cabeça, não há nada mais revigorante do que uma dose de bom humor, na medida certa. E quando o senso de humor, além de nos fazer rir, ainda nos faz pensar, então... dá vontade da gente aplaudir de pé! Foi o que aconteceu comigo esta semana, quando fui assistir ao excelente "Contos da era dourada", do diretor romeno Cristian Mungiu, vencedor do Palma de Ouro de 2007 pelo filme "4 meses, 3 semanas e 2 dias".

O filme é composto por seis episódios, de seis diretores diferentes, baseados em 'lendas urbanas' da era comunista da Romênia nos anos 80, sob o governo totalitário de Nicolae Ceausescu. Essas lendas, por sua vez,  tem origem no imenso repertório de piadas que circulavam entre as pessoas para criticar o regime e aliviar um pouco a pressão do dia a dia, nas filas para comprar alimentos, no temor pela repressão policial, nas batalhas inglórias contra a burocracia, nas conversas entre amigos para compensar a falta de liberdade de expressão, na indignação contra o puxassaquismo no alto comando governamental. Será que alguma dessas circunstâncias lhe soa familiar?

Pois é, um dos grandes méritos do filme é sua capacidade de transformar dramas locais em histórias perfeitamente universais, apresentando cada um dos simpáticos personagens - pessoas simples ou poderosas, trabalhadores urbanos ou rurais, jovens ou velhos - como simples seres humanos,  com seus defeitos, qualidades e incongruências humanas.    Que nem você, aquele cara ali da esquina e eu.

Uma das cenas mais impactantes é justamente a última, enquanto os créditos do filme vão subindo na tela e quase todo o mundo já está se levantando para deixar o cinema. De repente, sem qualquer aviso prévio, as cenas da comédia dão lugar a imagens reais do próprio Nicolae Ceausescu presidindo uma pomposa cerimônia cívica, em meio a bandeiras coloridas e homenagens da multidão patriótica, inclusive crianças, perfeitamente obedientes e uniformizadas - ingrediente infalível nos megaeventos de governos totalitários. A súbita transição da comédia para o documentário provoca uma sensação surreal e nos faz sair do cinema com um meio sorriso na boca.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Meu vendedor de frutas - Saudades da minha Nova York (4)


Diante da pequena banca de frutas, na esquina da Terceira Avenida com a rua 77, Buhca logo me chamou a atenção pelo sorriso simpático com que recebia os fregueses, quaisquer que fossem as condições climáticas do momento - sol, chuva, vento, neve. Às vezes fazia um frio cruel de manhã cedo, mas, para o sorriso de Buhca, não havia tempo ruim. Seu bom humor era infalível e contagiava a todos os que passavam por ali.

Buhca nasceu no Nepal e veio para os Estados Unidos morar com o pai e a madrasta, em busca de uma vida melhor. A mãe - contou-me certa vez - sofria de uma doença que a havia deixado paralisada e, por esse motivo, não pôde emigrar com a família. "Mas eu tenho mãe, ela não morreu", fez questão que eu soubesse. "Só que ela não pode vir até aqui para ficar comigo."

Era difícil calcular ao certo a idade de Buhca - talvez alguma coisa entre 20 e 30 anos. Por trás do sorriso no rosto jovem, havia uma tristeza suave, indefinível, de quem já havia sofrido mais do que devia.

A cada dois ou três dias, depois de sair do metrô da linha 6 na Lexington Street, eu passava pela sua banca e comprava dois ou três tipos de frutas a caminho de casa. Maçãs, morangos, bananas e amoras sempre me pareciam apetitosos. Os abacaxis, entretanto, eram invariavelmente caros e azedos. Outubro era o mês dos romãs - imensos, vermelhos, suculentos... irresistíveis.
Desde as primeiras horas do dia até o anoitecer, Buhca estava sempre por lá, pronto para me ajudar na escollha: "Hoje a manga não está muito boa: leve a pera, que é melhor." No final da compra, Buhca invariavelmente colocava  mais duas ou três frutas de "brinde" dentro da minha sacola, longe dos olhos dos outros fregueses. Eu sempre ralhava com ele, em tom de brincadeira: "Chega, Buhca! Desse jeito você nunca vai ficar rico!"  E ele ria, satisfeito com o nosso pequeno ritual.

Às vezes a gente conversava sobre futebol e Copa do Mundo -  uma linguagem quase secreta, que nos aproximava como estrangeiros no país onde ninguém se interessa pelo esporte bretão. Certa vez, depois de uma viagem de férias ao Brasil, eu lhe trouxe de presente uma camiseta da seleção brasileira. Desconfio que, nesse dia, o Brasil ganhou mais um torcedor incondicional para os jogos da Copa.

Com Buhca aprendi a dizer "obrigado" em nepalês: "danibat". Era assim que eu encerrava o nosso diálogo pontual, antes de voltar para casa, carregada de frutas da estação.

Nesta próxima viagem a Nova York, um dos lugares que mais tenho vontade de rever é a pequena banca de frutas do meu amigo Buhca. Será que, depois de todo esse tempo, ele ainda vai estar naquela esquina do Upper East Side, vendendo frutas com sorrisos?

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Sim, lá estava Buhca no lugar de sempre, em sua banca de frutas na esquina da Terceira Avenida com a rua 77, atendendo a todos os fregueses com um sorriso!

Foi muito gostoso rever meu amigo fruteiro nesta viagem a Nova York e ser logo reconhecida por ele em meio a tantos passantes, como se nunca tivesse saído de lá. "Hello! Are you back from Brazil?", perguntou ele entre alegre e surpreso, quando me viu na calçada.

Depois do abraço e da foto tirada por minha amiga Barbara, ele foi logo anunciando: "I have a surprise for you." Tirou do bolso seu telefone celular e em seguida me mostrou a foto de dois jovens abraçados no dia do casamento, sorrindo felizes para a câmera. "I got married!", disse ele, orgulhoso.

Contou que sua jovem esposa era filipina se chamava Rosemarie. Depois me perguntou pela família e pela vida no Brasil.

Por fim, decidi comprar umas uvas para comer mais tarde no hotel. Depois que paguei por elas, Buhca ainda encheu minha sacola de frutas de "brinde", como sempre fazia: duas maçãs, dois kiwis, duas laranjas. Como sempre também, ralhei com ele: "Desse jeito, você jamais vai ficar rico!"

E nos despedimos com um grande sorriso, felizes com o reencontro.




Entre raios e trovões - Saudades da minha Nova York (3)

Saí às pressas do meu apartamento no Upper East Side para chegar a tempo à minha aula de Nia - uma espécie divertida de dança, mistura do vigor da arte marcial com o ballet descalço da Isadora Duncan. De minha casa até a academia havia dez longos quarteirões a percorrer a pé, um trajeto que me em geral me tomava quinze minutos e me deixava pronta para começar a dança com os músculos já convenientemente aquecidos. Na pressa para não chegar atrasada, acabei me esquecendo de consultar a previsão do tempo na Internet e saí à rua despreocupada, naquela manhã de verão novaiorquino, cheia de sol.

A aula, como sempre, me encheu de energia boa. Terminada a dança, tomei uma chuveirada rápida, me arrumei de qualquer maneira e desci os degraus de dois em dois até a porta, para ganhar a rua e cuidar logo da vida, que o dia era curto. Quando cheguei à calçada, imediatamente senti no ar uma coisa estranha. Soprava um vento morno, daqueles que levantam a poeira do chão em redemoinho. Olhei para cima:  nuvens pesadas, cor de grafite, passavam ameaçadoras sobre minha cabeça.

Naquele período de pouco mais de uma hora, o tempo havia mudado por completo. O céu estava para desabar. Ai, meu Deus, eu não tinha levado meu guardachuva... e ainda me faltavam dez quarteirões pela frente, até chegar em casa! O jeito era apressar o passo e torcer para que o temporal não começasse logo.

Eu não havia percorrido sequer dois quarteirões, quando o que eu mais temia aconteceu. Uma tempestade violenta, digna de verões cariocas, se abateu de repente sobre a ilha de Manhattan, sem dó nem piedade. A Second Avenue estava completamente deserta: nenhuma pessoa normal se arriscaria a sair à rua com um tempo daqueles. As marquises da avenida eram, além de poucas, estreitas demais para oferecer qualquer abrigo relevante a um pedestre tão desprevenido como eu.

Entre raios e trovões, pensei comigo mesma: "Não adianta fugir. Meu cabelo já está molhado, minha roupa é de briga, minha sandália impermeável. Azar. Agora vou curtir essa experiência de caminhar na chuva até chegar em casa, já que não vou encontrar nenhum conhecido por aqui mesmo." E lá fui eu, sem apressar o passo, deixando a água escorrer pelos cabelos sem tentar me proteger da chuva, arrastando os pés em ritmo cadenciado: choc... choc... choc...

De repente, no meio daquela cortina de água, distingo um vulto igualmente encharcado, caminhando em minha direção. Quando chegamos perto um do outro, percebo que se trata de um homeless, um morador de rua, maltrapilho - este triste personagem com que nos deparamos com frequência nas ruas da cidade mais rica do planeta. Instintivamente desvio os olhos e tento me afastar um pouco do seu caminho. Mas aquele homem sem eira nem beira me olha bem dentro dos olhos, abre um enorme sorriso e me diz em alto e bom som, como se finalmente tivesse identificado uma pessoa que o entendesse naquela cidade:

"It feels good, doesn't it?"

Tive que rir junto com ele. Sim, a sensação de caminhar pelas ruas de Nova York naquela chuva torrencial de verão era realmente deliciosa! Nossos olhares se encontraram por alguns segundos e demos uma boa gargalhada juntos.

Dali seguimos nossos caminhos em direções opostas, rindo felizes, pelo puro prazer de viver, entre raios e trovões.

domingo, 5 de setembro de 2010

Mais saudades da minha Nova York (2)

Por mais de três meses depois da tragédia de 11 de setembro de 2001, fiquei sem coragem de descer ao subsolo de Nova York e pegar o metrô, como eu sempre tinha feito até então. A agressividade do esquema de policiamento ostensivo e os olhares ansiosos dos pedestres à minha volta me intimidavam de tal forma que eu preferia enfrentar a lentidão exasperante do serviço de ônibus a me enfiar naquelas galerias subterrâneas e escuras.  "Se eu for vítima de uma bomba terrorista, que seja num lugar aberto e bem iluminado: quero enxergar direitinho o lugar onde vou morrer", costumava brincar com meus amigos.

Os turistas desapareceram da noite para o dia. Assim que as pontes e túneis foram reabertos ao tráfego, quem morava fora da ilha, mais do que depressa, deu no pé. Aqueles que já tinham comprado passagens e feito reservas de hotel cancelaram a viagem. Em Manhattan só sobramos nós, pobres moradores sem uma segunda casa onde pudéssemos nos refugiar por uns tempos, até a poeira do medo baixar.

Os teatros estavam às moscas. Artistas da Broadway fizeram uma espécie de passeata nas ruas da região do Times Square, convidando a todos para que fôssemos ao teatro pela metade do preço - please! Operários da indústria do turismo, aqueles homens e mulheres precisavam urgentemente de seu ganha-pão, enquanto que nós, moradores da ilha atacada, necessitávamos alimentar o espírito com alguns momentos de alegria.

Foram dias surreais, aqueles. Dentro do meu armário eu mantinha um kit de sobrevivência em caso de hecatombe: pequena reserva de água potável, biscoitos, lanterna, caixa de fósforos, cadernetinha de telefone, passaporte. Se aquilo fazia sentido, não sei. Mas pelo menos me dava a sensação de ter feito alguma coisa útil.

Para manter o equilíbrio emocional, busquei refúgio no relacionamento com amigos e vizinhos. Aproveitei longas horas de solidão para arrumar gavetas e organizar as fotos antigas de família. Consegui fazer uma coisa que vinha planejando há anos, mas para a qual nunca encontrava tempo suficiente: digitalizei no computador boa parte das fotos dos meus filhos pequenos, que já estavam perdendo a cor original. Foi uma atividade que me trouxe muitos momentos de paz e satisfação interior.

No domingo seguinte ao ataque, tive dificuldade para entrar na igreja de St Ignatius na Park Avenue, tão lotada estava. Mais difícil ainda foi conter as lágrimas, quando um pequeno grupo de bombeiros da nossa vizinhança, uniformizados e solenes, atravessaram toda a igreja carregando o pão e o vinho da comunhão até o altar, chorando convulsivamente como crianças.

Minha busca pela paz interior teve formas variadas: certa vez fiquei uma hora inteirinha sentada em silêncio num templo budista quase vazio; ouvi música clássica à exaustão; perambulei horas a fio pelo Central Park. Mas nenhuma dessas experiências se comparou à sensação de bem estar espiritual que tomou conta de mim quando estive de manhã cedo no Metropolitan Museum of Art.

Naqueles dias sem turistas e muito poucos visitantes, o Museu decidiu excepcionalmente abrir suas portas aos associados uma hora antes do início da visitação. Na Galeria de Arte Medieval foi montado um pequeno palco com algumas cadeiras em volta, onde funcionários e amigos do Museu podiam tocar algum instrumento, contribuindo para a harmonia do ambiente. Sem dizer palavra, de vez em quando aparecia alguém para tocar um solo de violino, uma peça de cello ou uma flauta. Pessoas iam e vinham suavemente e em silêncio, como numa dança sem coreografia, mas orquestrada à perfeição.

Terminada a hora musical, percorria com calma outras galerias de arte, muitas delas de culturas já desaparecidas no tempo. Poder estar ali, sem ninguém à minha volta, na proximidade quase íntima daquelas obras de arte concebidas e criadas por pessoas que um dia nasceram, depois cresceram e por fim morreram em terras que nunca pisei, falando idiomas que nunca ouvi... de repente, tudo aquilo me acalmou por dentro. Pude, finalmente, entender a pequenez dos meus medos e aceitá-los como são: pequenos.

Foi numa dessas manhãs no museu quase vazio que decidi: era ali que eu iria trabalhar. Tinha encontrado o meu refúgio dentro de Nova York.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Saudades da minha Nova York (1)

A poucos dias de viajar do Brasil para o Canadá, com passadas por Nova York na ida e na volta, faço uma parada para pensar no que mais gostaria de fazer por lá - além, é claro, de ver minha filha que mora em Toronto, motivo principal dessa viagem.

Nova York há muito deixou de ser para mim uma cidade "turística". Não gosto nem desgosto da cidade. Conheço bem suas virtudes e defeitos, o glamour de suas festas e a dureza do cotidiano. Se tenho a oportunidade de voltar lá, vou com gosto. Caso contrário, não vou e pronto. Minha Nova York mora dentro de mim e a visito com frequência no meu mundo imaginário, sem grandes cerimônias, como quem vai à casa de um velho e querido amigo.

Da mesma forma que qualquer morador "normal" da ilha (percentual altamente duvidoso, temo), fujo da região do Times Square como o diabo da cruz. Pegar um barco cheio de turistas até a Estátua da Liberdade... subir de elevador no Empire State Building... Ui, tô fora! Passear de charrete pelo Central Park, então... oh my God, horror dos horrores! Vai que um conhecido meu resolve cruzar o parque justo naquela hora e me reconhece ali dentro da charrete... Não pago esse mico de jeito nenhum!

O que mais me emociona em Nova York são fragmentos do mosaico da cidade - recantos, rostos, cheiros, sons - que me trazem lembranças da minha experiência pessoal na Grande Maçã, onde vivi por sete anos. São lembranças de todos os tipos - engraçadas, assustadoras, enriquecedoras, alegres, chocantes, tristes, estimulantes.

Recuo nove anos na memória e penso na deslumbrante manhã de sol do dia 11 de setembro de 2001, quando eu caminhava despreocupada em direção à minha academia de ginástica na rua 85 do lado leste de Manhattan, os olhos fixos no céu. Estava maravilhada com a beleza daquele azul intenso, sem nuvens, com um tipo de luminosidade que só se vê no outono. De repente, a notícia do ataque ao World Trade Center escureceu tudo. Lembro dos olhares incrédulos à minha volta e da imobilidade geral. Registros da tragédia reaparecem na minha mente como num filme em câmera lenta. O mais estranho de tudo foi o silêncio que se abateu sobre a cidade, ao norte do Financial Center. Ninguém gritava, ninguém chorava. O silêncio tomou conta das ruas.

De uma hora para a outra, todos os túneis e pontes de acesso a Manhattan foram interditados. Ninguém mais entrava nem saía da ilha. O metrô parou. Os aviões deixaram de sobrevoar nossas cabeças. Os ônibus e automóveis deixaram de circular. Não havia para onde fugir. Filas intermináveis de homens e mulheres, muitos cobertos de uma espessa poeira branca da cabeça aos pés, com expressão de enorme cansaço, se deslocavam em silêncio em direção ao norte da ilha - isto é, para longe do inferno. A maioria morava fora de Manhattan e não tinha para onde ir. As linhas telefônicas emudeceram. Os celulares deixaram de funcionar por excesso de tráfego. Os serviços da Internet foram interrompidos. Só consegui me comunicar com o Brasil para tranquilizar  minha família  e meus amigos dois dias depois da tragédia. Apenas a televisão nos ligava uns aos outros. E todos os canais transmitiam as mesmas imagens e notícias daquele acontecimento terrível, até então inimaginável.

Foi através do noticiário de TV que fiquei sabendo, estarrecida,  que os estoques de botes infláveis haviam se esgotado rapidamente em Nova York. Como assim? Estão todos comprando botes infláveis agora? Eu nunca havia percebido com tanta lucidez o sentido terrível da palavra "ilhado".

Hoje todos sabemos que os ataques se limitaram ao dia 11 de setembro. Mas para nós, prisioneiros da ilha, ainda viveríamos muitos dias mais na expectativa angustiante de novos ataques. Mais investidas aéreas, guerrilhas químicas, hecatombe nuclear, envenenamento do abastecimento de água da cidade, bomba no metrô, descarrilamento de trens... Nada disso nos parecia impossível depois daquele 11 de setembro. Na nossa imaginação de ilhéus confinados, não havia limites para novas catástrofes em Nova York.

Finalmente, passadas algumas semanas, os túneis e pontes de acesso a Manhattan começaram a ser reabertos aos poucos, sob forte esquema de segurança.  Mas caminhar pelas ruas de Nova York nunca mais voltou a ser o que era antes daquele dia trágico.

Poucos dias depois recebemos o telefonema de nossos dois filhos, Flavio e Isabel, que então moravam e estudavam na cidade de Boston. Eles queriam nos contar que tinham comprado passagens de trem para passar o fim de semana conosco em Nova York. Nossa primeira reação foi - oba!- de uma imensa alegria. Mas logo depois a alegria cedeu lugar à enorme preocupação com a segurança deles. Só que aqueles dois lindos jovens adultos nem ligaram para nossos medos - talvez pela leveza própria da idade, talvez pelo amor solidário que tanto nos une em momentos difíceis como aqueles que estávamos vivendo.

Nossos filhos chegaram sãos e salvos e nos proporcionaram um dos fins de semana mais maravilhosos que tivemos em todos aqueles sete anos vividos na glamorosa Nova York - dentro do nosso pequeno apartamento, jogando conversa fora, saboreando comidinha caseira, curtindo momentos preciosos de paz familiar.

Agora, enquanto relembro com saudade e doçura aqueles momentos vividos com nossos filhos, surge uma dúvida. Não sei se consegui transmitir a eles como me senti grata e orgulhosa por terem vindo nos ver naquele fim de semana - para mim, uma emocionante demonstração de amor e coragem.

Preciso dizer isso aos dois.

domingo, 15 de agosto de 2010

Boa remada, Dragão!

Quando você estiver lendo este posting,  Bruno e Olga provavelmente já terão tido tempo para matar as saudades, se abraçar e se beijar bastante, felizes com o reencontro depois de quatro meses de separação forçada - ele no Rio de Janeiro, dando aulas de remo no clube Botafogo da Lagoa, e ela na cidade de Trier, Alemanha, cursando faculdade de Direito. Daqui a duas semanas os dois estarão enfim casados e  morando na Alemanha, concretizando um sonho de amor que começou há dois anos no Rio, por um capricho do destino. Um sonho que, para muita gente, parecia impossível.

Muitos só conhecem o Bruno pelo apelido, Dragão, por causa da tatuagem gravada no braço direito. Ele é um dos instrutores que me ensinam a remar na Lagoa, a quem encontro quase todos os dias ao nascer do sol  naquele cenário de cartão postal, sob os braços abertos do Cristo Redentor.

Bruno Nagele tem 30 anos de idade e nasceu em Caxias, RJ, onde passou toda a infância. Os pais se separaram quando ele tinha doze anos de idade e a mãe criou os dois filhos trabalhando em casa de família. Logo Bruno começou a trabalhar como boy de serviços de rua num escritório de advocacia no centro da cidade. Foi nessa época, por mero acaso, que o remo entrou na sua vida. "Um dos sócios da empresa era vice-presidente do clube Botafogo", conta Bruno. "Um dia, quando eu estava para sair de férias, pedi à secretária que falasse com ele, para que me deixasse remar na Lagoa. Quase nem acreditei quando ele disse que eu poderia ir!"

E assim começou a praticar este esporte, que muito o entusiasmou e logo transformaria sua vida. Três meses depois de iniciar a prática do remo, no ano de 2000, conheceu Victor Jahara, professor da escola de remo do Botafogo. Foi o início de uma grande amizade. A dupla competiu diversas vezes em barco double, tendo conquistado três campeonatos cariocas e um brasileiro. Em 2007, os dois remadores resolveram se afastar um pouco do clube para se dedicar à prática de outra modalidade do esporte - canoa havaiana, na Praia Vermelha, Urca. "Mesmo praticando remo longe do clube, a gente sempre vinha ao Botafogo para rever o pessoal e tomar uma água de coco de graça na barraca do Irineu", conta Bruno, bem humorado.

Enquanto isso, do outro lado do oceano Atlântico, a alemã Olga Sempf se dedicava aos estudos na faculdade de Direito na pequena cidade de Trier, a mais antiga da Alemanha, na região do rio Mosela, próximo à fronteira de Luxemburgo. Com 2 mil anos de história, Trier possui inúmeras ruínas romanas, que atraem turistas do mundo todo. Ali nasceu Karl Marx em 1818.

Filha de imigrantes russos, Olga fala vários idiomas e sempre gostou de viajar e conhecer países e culturas diferentes. Depois de ter morado um ano nos Estados Unidos como au pair - isto é, trabalhando na casa de uma família americana em troca de hospedagem - Olga resolveu se aventurar por outros costados e obteve uma bolsa de estudos num programa de intercâmbio acadêmico Brasil-Alemanha (DAAD). E foi assim que ela foi morar em Recife. Aprendeu a falar Português e trabalhou como estagiária na área de Direito.

Como de praxe, o DAAD organizou uma reunião de todos os estudantes alemães que estavam no Brasil num hotel do Leme, no Rio de Janeiro. A reunião teria a duração de apenas três dias. Como Olga nunca tinha visitado a Cidade Maravilhosa, resolveu esticar um pouco a viagem para conhecer melhor os pontos turísticos. Só que lhe faltava um pormenor importante: dinheiro suficiente para se hospedar em hotel.

E foi justamente aí que o destino armou das suas e acabou reunindo a vida do remador carioca à da estudante alemã. Desde 2004 a família de Bruno hospedava estudantes de diversos países no seu apartamento de Copacabana, através do Hospitality Club, uma organização voluntária com associados no mundo todo. Um belo dia, Bruno recebe um e-mail de Olga, perguntando se haveria disponibilidade de hospedagem para ela durante um período de quatro dias. "Naquela época eu estava trabalhando muito, num projeto gráfico de livros infantis", relembra Bruno, que havia concluído um curso de um ano de webdesign. "Por isso eu mal pude dar atenção à solicitação dela e acabamos acertando as datas da hospedagem muito rapidamente."

Foi com grande encantamento que ele viu aquela "menina bonitinha", que falava um Português arretado com sotaque alemão-pernambucano, chegar à sua casa no dia marcado. "Era bem na hora do almoço e eu estava preparando minha comida - massa com molho de camarão", diz Bruno. "Aí eu a convidei para almoçar e, para minha surpresa, ela aceitou e comeu tudinho!" O resto da história é uma sucessão de longas caminhadas pelas praias e pontos turísticos do Rio de Janeiro, que rapidamente conduziram os dois jovens a um clima de enamoramento. Mas Bruno lembra que a conquista foi muito difícil, pois Olga achava que não tinha sentido começar um namoro, já que dali a poucos dias teria que viajar de volta ao Recife. "Tive que insistir muito para conseguir convencê-la de que o nosso namoro iria dar certo", disse ele.

Olga retornou ao seu estágio. Apenas três semanas depois, lá estava o Bruno a bordo de um avião, voando para reencontrar a namorada. O amor foi mais forte do que todas as dificuldades geográficas e os dois continuaram a se encontrar. Olga veio morar no Rio e aprendeu a remar na Lagoa. O pai de Bruno, com quem ele sempre manteve uma relação afetuosa, adoeceu gravemente neste período. O casal acompanhou de perto seus últimos meses de vida, viajando de duas a três vezes por semana do Rio para Petrópolis para visitá-lo. "Meu pai adorou conhecer a Olguinha e dizia que eu tinha muita sorte de ter encontrado aquele anjo", disse Bruno.

No dia 1º de setembro do ano passado, Bruno e Olga ficaram noivos. Em dezembro, dois dias depois de Bruno terminar a faculdade de Informática, seu pai faleceu. No dia seguinte, depois do enterro, Bruno foi trabalhar, mas não contou nada do ocorrido a ninguém. "E eu ainda levei bronca do Irineu por ter chegado atrasado naquele dia", relembra, com um sorriso triste. "Mas depois, quando ele soube do motivo, me abraçou muito."

Logo em seguida, Bruno embarcou para a Alemanha, em sua primeira viagem  fora do Brasil. Conheceu os futuros sogros, ("Os primeiros minutos foram aterrorisantes para mim! Eu não conseguia falar uma palavra que eles entendessem", diz ele), viu neve pela primeira vez e passou o Natal com a família Sempf que, afinal, o recebeu muito bem. Quando voltou ao Brasil, Bruno começou a estudar Alemão no Instituto Goethe e já completou o nível 1. Por exigência do governo, ele precisa estudar seiscentas horas (ao custo de 1 euro por hora) e passar no nível 4 para poder trabalhar lá. A motivação é tanta, que ninguém duvida que Bruno conseguirá atingir este objetivo rapidinho.

No próximo dia 3 de setembro Bruno e Olga se casam no civil e, no dia 9 de outubro, no religioso. Felicidades ao casal! A turma do remo vai sentir muitas saudades do Bruno e do seu jeito sempre amável de dizer para a gente, na hora de sair com o barco na lagoa: "Boa remada!"



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Quem quiser ver imagens da cidade de Trier (ou Téveris),
onde Bruno e Olga irão morar, pode clicar aqui:
http://www.youtube.com/watch?v=NuMbd6WEp5s

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

A Flip me pegou


A Festa Literária Internacional de Paraty já me pegou de jeito. Bastou eu ir dois anos seguidos à Flip - o maior evento literário da América Latina - na charmosa cidadezinha colonial perto do Rio de Janeiro, para reconhecer que sou uma viciada incurável nesse negócio. E sem chance de reabilitação! Nem bem terminaram os últimos debates do quinto dia da festa, no domingo à tarde, e eu já estava sonhando com a volta no ano que vem.

Fecho os olhos e relembro com saudade as caminhadas pelas ruas de pedras desiguais, a música ao vivo saindo pelas janelas dos bares e se misturando a poemas declamados pelas esquinas, risadas de crianças, sotaques estrangeiros, rodas de samba e maracatu. Vejo carrinhos vendendo cocada e pé-de-moleque. Lojas de cachaça de todos os tipos, com garrafas bem arrumadas em prateleiras que cobrem todas as paredes até o teto. Galerias de arte sofisticadas, com uma carteira de exportação de fazer inveja a muita gente graúda no mercado de arte internacional. Peças de artesanato alegres e despretenciosas, dando vida a pedaços de madeira, cerâmica, tecido. Abacaxis de ferro batido enfeitando as sacadas das janelas. Barcos multicoloridos flutuando no cais. Cheiro de peixe recém pescado. Cheiro de moqueca e pimenta malagueta.


E os livros? Ah... os livros! Eles estão por todos os lados - lançados, vendidos, comprados, cobiçados, disputados, esgotados, autografados, folheados, presenteados, prometidos, transformados em filme. Aviso aos navegantes de primeira viagem: a Livraria da Vila instalada na tenda da Flip é uma tentação que deve ser evitada a todo custo pelos espíritos impulsivos, dos que não conseguem se limitar a comprar o que o próprio bolso comporte. Eu bem que tentei, mas acabei saindo de lá com uma sacola carregadinha de livros, irresistíveis, sem os quais não conseguiria mais viver. (Quem foi que falou aí em crise do mercado editorial?)


Mas a coisa que mais me cativa no ambiente da Flip é a consciência de estar no meio de pessoas que gostam de ler e trocar idéias umas com as outras. São pessoas dispostas a desacelerar o ritmo da loucura cotidiana para ouvir o que outras tem a dizer. Isso parece valer também para os palestrantes convidados da Festa. A gente tem a impressão de que eles não estão ali só para exibir vaidosamente seus predicados intelectuais, mas para aprender uns com os outros também. A maior parte deles não discursa: simplesmente conversa com a gente.

No meio de tantas estrelas do meio literário e acadêmico - como Isabel Allende, Salman Rushdie, Ferreira Gullar, Moacyr Scliar, Azar Nafisi - fica difícil falar de um ou de outro sem cometer omissões incômodas. Mas não vou esconder aqui minha preferência deslavada por um palestrante relativamente pouco conhecido do grande público - o bibliotecário, professor e escritor Edson Nery da Fonseca, que participou da mesa que abriu os debates sobre a obra de Gilberto Freyre, o homenageado do ano.
Aos 88 anos de idade, ele se locomove com dificuldade e precisa se amparar em outras pessoas para subir ao palco. Mas, quando começa a falar, o brilho nos olhos desse pernambucano arretado empolga qualquer platéia, refletindo o intelecto vigoroso e entusiasmado que muitos jovens gostariam de ter. No ano passado, ele já me havia emocionado com a interpretação inspirada de uns quantos poemas do Manoel Bandeira, de quem foi contemporâneo e amigo, e cuja obra literária ele conhece como poucos. Este ano, Nery repetiu o show, recitando de cor um poema delicioso de Gilberto Freyre (de quem, aliás, ele também foi amigo),  chamado "Bahia de todos os santos e de quase todos os pecados". Foram seis minutos de puro deleite. Quando ele finalmente se calou, a platéia toda o aplaudiu de pé.

A Flip frequentemente nos surpreende com momentos mágicos como esse, nem sempre registrados pela grande imprensa. Food for thought, diriam os ingleses. No banquete literário de Paraty, os pratos do cardápio são internacionais, mas o tempero - não tenho dúvida - é bem brasileiro. Ainda bem.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

A música do segundo andar


No começo eu me assustava com o volume alto da guitarra que entrava sem avisar pela janela do nosso apartamento no Rio de Janeiro. Só me faltava essa! Parava o que estava fazendo e aguçava o ouvido. Quem seria aquele vizinho folgado, com coragem de ligar o aparelho de som nesse volume, a essas horas da noite? - eu me perguntava, num misto de indignação e curiosidade. Mas logo a melodia esperta e suave que vinha do segundo andar me imobilizava.

Era fácil reconhecer alguns dos compositores brasileiros, sempre da melhor qualidade: Chico Buarque, Edu Lobo, Tom Jobim, Caetano Veloso... O difícil era identificar de onde vinham aqueles acordes diferentes, que brotavam inesperados como num tango argentino. Cada nota extraída daquela guitarra me soava como uma carícia na noite, insidiosa e elegante.

"Esse guitarrista é bom demais, deve ser algum músico profissional", comento, encantada, com meu marido. "E como é que você sabe que é um homem que está tocando essa música -  e não uma mulher?" Pelo tom desafiante da pergunta percebo, mal contendo o riso, que ele está com ciúmes do vizinho invisível. "Eu sei, simplesmente, e pronto. Acho que a gente deveria dar graças a Deus de ter um vizinho assim, que gosta deste tipo de música, tão bonita e sofisticada... Já pensou se fosse um pagodeiro?"

Meu marido é obrigado a concordar: "É... pensando bem..."  E, a despeito dele próprio, também interrompe o que está fazendo para curtir a música celestial que invade a nossa casa. Mas logo abandona o devaneio, inquieto. "Acho que não tem músico nenhum lá em cima, não. Deve ser algum CD que o vizinho está tocando alto...", pondera o maridão, louco para encerrar de vez a minha tietagem.   Bem neste momento, a guitarra interrompe a bela melodia que está tocando para recomeçá-la em seguida. Agora não há dúvidas. Fica óbvio que não estamos ouvindo um CD, mas o trabalho cuidadoso de um músico em busca da interpretação perfeita.

As "canjas" do vizinho do segundo andar agora fazem parte do nosso ambiente doméstico. E nós as saboreamos com gosto, qualquer que seja a hora. Em geral duram pouco, não mais que cinco ou dez minutos. Houve uma vez em que o guitarrista  nos despertou do mais profundo sono no meio da noite, mas sinceramente nem liguei: além da melodia ser divina, o concerto da madrugada foi de curtíssima duração, não teve mais do que alguns poucos acordes. Quando a guitarra enfim se calou, voltei imediatamente, feliz e embalada, aos braços de Morfeu.

Minha curiosidade para identificar o guitarrista do segundo andar foi maior que a atitude blasée que eu vinha tentando manter há meses no meu prédio. Há poucos dias não me contive e perguntei ao porteiro, torcendo para ninguém mais me ouvir: "Aquele vizinho do segundo andar é um músico profissional... não é?" Foi aí que fiquei sabendo: meu vizinho é o grande Victor Biglione, um dos maiores guitarristas e violonistas da atualidade, arranjador de peso que, entre outros prêmios, conquistou o Grammy Latino ao lado de Milton Nascimento. Nasceu em Buenos Aires, mas veio para o Brasil quando tinha apenas seis anos de idade. Apaixonou-se pela música brasileira e já tocou com mais de trezentos nomes da MPB,  mas felizmente nunca permitiu que o tango o deixasse. Que mistura boa ganhamos todos aqui no Brasil!

Gracias por la buena musica, vecino!

terça-feira, 27 de julho de 2010

Um prato de aipim ao luar


Marido pescando em Goiás, casa vazia, serenidade total. Vou para a cozinha e preparo um dos meus pratos prediletos: aipim cozido, com queijo de Minas derretido por cima.

Como vou jantar sozinha, por pura preguiça decido que hoje não preciso por a mesa.  Ao invés disso, vou procurar uma cadeira lá fora, levando comigo o prato de aipim, fumegante. Desligo a televisão, apago as luzes da sala, abro a porta e - deslumbramento completo - é noite de lua cheia!

Como é que eu ainda não tinha visto a lua antes?

Fico ali parada, olhando extasiada para aquela maravilha da natureza. Sento-me devagarinho e, em silêncio, começo a comer pela beirada aquele manjar dos deuses, rodeada pela Mata Atlântica da serra de Petrópolis, sob a luz do luar.

Não trocaria este restaurante por nenhum outro no mundo.  Luxo tropical.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Meu marido foi pescar

A essas horas meu marido está viajando num ônibus fretado, cheio de velhos amigos, a caminho do rio Cristalino, estado de Goiás. Estão todos  felizes: vão pescar. Há exatamente um ano, fiz esta mesma viagem com ele e um casal de amigos. Foi bom enquanto durou, aprendi muita coisa, vi maravilhas incríveis da natureza do Brasil. 
Mas, para mim, já está de bom tamanho: 
pescaria é mesmo coisa de homem. 

Reli o texto que escrevi quando voltamos dessa viagem no ano passado e foi divertido relembrar nossas aventuras. O texto é um pouco longo, mas acho que vale a pena publicá-lo assim mesmo. 
Aqui vai:




“O que?! Ainda faltam mais três horas e meia de viagem  nesta canoa a motor, descendo o rio Araguaia sem parar, a cinquenta quilômetros por hora? E ainda  vou ter que ir sentada nesta cadeira de plástico, sem qualquer proteção contra o sol?”

Eu mal podia acreditar no que ainda nos aguardava ali em Luiz Alves, povoado nos confins de Goiás. Com o corpo moído e as pernas clamando por uma boa esticada, eu sinceramente imaginava que tivéssemos chegado ao ponto final do trajeto e que logo teria início minha primeira experiência de pescaria – atividade que sempre me pareceu meio misteriosa, pertencente ao mundo masculino, cujos prazeres me escapavam.  Afinal,  desde o nascer do sol, quando saímos do nosso hotel de Goiás Velho,  já tínhamos percorrido mais de seis horas de estrada,  em boa parte das quais fui obrigada a viajar comendo poeira no banco traseiro, disputando com o volumoso equipamento pesqueiro o direito de encontrar uma fresta na janela lateral que me permitisse admirar de vez em quando a bela paisagem do cerrado goiano.

“Então você não leu com cuidado o itinerário que eu preparei, com todos os detalhes dessa viagem?”,  indignou-se o nosso guia e amigo, surpreso com minha surpresa.

Não, eu realmente não tinha lido direito. Mas estava tudo escrito lá, direitinho: saída de Goiás Velho a tal hora, chegada à pousada às margens do Cristalino (afluente do rio Araguaia) a tal hora, num percurso de carro e barco. Viu? Era só fazer as contas, ora...

Nosso guia estava certo: ainda faltavam mesmo três horas e meia de viagem, debaixo de sol, trepidando pelo grande Araguaia  naquela pequena canoa.
“Vamos lá! Tudo pronto? Já passaram protetor solar? E repelente de inseto?”


OK, logo percebi que, dali para a frente, seria melhor seguir  as regras do jogo sem questionar coisa alguma. Quando fomos apresentados ao piloteiro Negão, que nos próximos três dias dirigiria a nossa canoa e nos iniciaria nos mistérios da pesca esportiva, já me sentia humildemente rendida diante da grandeza selvagem daquela região. Percebi que minha segurança pessoal estava nas mãos daquele homem e, se eu realmente pretendesse voltar a Luiz Alves no final da nossa temporada de pescaria, deveria obedecer aos seus comandos.


Negão era um homem de uns quarenta anos de idade e pele da cor da terra das margens do Araguaia - bem mais clara do que o apelido fazia supor. Sentia-se claramente à vontade dentro e fora da canoa.  Quando em terra, caminhava com firmeza, deixando pegadas fundas atrás de si. Tinha olhos aguçados, gestos ágeis. Era um homem de poucas palavras, mas, sempre que falava, sorria com simplicidade e sem constrangimento.  Resolvi confiar nele.


O barulho do motor e do vento que batia contra os nossos rostos nos impedia de conversar.  Isso foi  até bom, pois durante o trajeto pudemos nos concentrar na extraordinária beleza da região, enquanto a canoa avançava rio acima. 


O reflexo das nuvens e da vegetação na superfície do rio criava verdadeiras pinturas dançantes.  Bandos de papagaios, garças e tucanos  cruzavam a nossa frente.  Na água, botos, tartarugas e jacarés apareciam e desapareciam por todos os lados, como num passe de mágica. Vida, vida e mais vida... Minha nossa, quanta vida!

Depois da primeira hora de viagem, parei de tirar fotos. Percebi que seria inútil tentar digitalizar tanta beleza natural.

Quando finalmente nos aproximamos da nossa pousada no Cristalino, o sol começava a se por, inundando toda a região de luz dourada.  Tudo parecia tão impossivelmente bonito que me deu vontade de rezar...


Confesso que meu rompante espiritual se desfez no momento em que saltamos da canoa e uma nuvem de muriçocas  nos rodeou, como se quisessem nos dar as boas vindas.

Além das muriçocas, também vieram nos recepcionar no ancoradouro  da pousada dois outros habitantes locais: um desengonçado e simpático casal de jaburus, com suas pernas finas, olhar curioso e nenhum medo dos seres humanos.
 
Sem desperdiçar palavras, o Waldir, gerente da pousada, nos entregou as chaves dos quartos – franciscanamente mobiliados e pequenos, mas limpos.
De repente tive a sensação de ser ali uma visitante incômoda, uma invasora em terras estrangeiras.  É que tudo naquela região é feito para receber  “fraternidades” de pescadores,  quase todos representantes do sexo masculino.  São homens que viajam agrupados em alegres bandos suarentos, despojados e felizes por estarem longe das suas mulheres e das limitações e desconfortos que lhes são impostos no dia a dia pelo mundo delas.
Ali naqueles confins, eles podem pescar, beber cerveja, contar piada, contar vantagem, contar mentira, falar palavrão, arrotar, soltar pum e se sujar à vontade durante o dia. À noite, se lhes der na telha,  podem até dormir com a mesma roupa no corpo sem que ninguém lhes chame a atenção por isso.
É o mundo dos homens, onde aqueles pescadores periodicamente vão buscar refúgio para vivenciar e celebrar sua masculinidade. Imagino que, para muitos deles, o ato de “ir pescar” seja uma necessidade ancestral, um saudável rito de afirmação da tribo masculina. Só sei dizer que, no momento em que pisei naquela pousada do Cristalino, percebi claramente que aquele mundo não era o meu. E agora, José?

Mais do que uma viagem de férias, esta talvez tenha sido uma curiosa viagem ao interior de mim mesma. Mergulhada naquele mundo masculino e estranho, timidamente saí em busca de um canto qualquer onde eu pudesse me acomodar e simplesmente ficar observando, calada.

Sem jamais me sentir plenamente à vontade, encontrei este canto dentro de mim mesma, num inesperado e repentino sentimento de gratidão aos dois homens diretamente responsáveis por minha presença ali: o nosso amigo, que não só idealizou e planejou toda a viagem, como também nos conduziu de carro por mais de 1600 quilômetros através do cerrado goiano; e meu marido, que tem sacolejado ao meu lado em todas as viagens dos últimos quarenta anos, pelas estradas da vida.

De repente me dei conta: o que esses dois homens fizeram, quando decidiram convidar suas respectivas esposas para acompanhá-los nesta viagem pelo estado de Goiás, rumo ao coração do mundo masculino, foi na verdade um ato de amor e generosidade.  Eles abriram as portas do seu castelo e nos deixaram entrar.

Foi bom ter entrado nesse castelo. Ali pude entender melhor as diferenças entre o masculino e o feminino, aceitando-as com simplicidade.  Somos obviamente diferentes e complementares – e só. Assim é, sempre foi e assim será. Que bom!

Nesta viagem, descobri que a pescaria faz parte do mundo dos homens. Como mulher, posso participar dela de vez em quando – e até me divertir bastante nessa atividade - mas jamais com o mesmo entusiasmo deles. Fui chegando a esta taxativa conclusão aos poucos, à medida que tomava conhecimento da enorme quantidade de perigos que corríamos pelo simples fato de estarmos naquele lugar.

Os perigos do rio Araguaia são grandes e reais. Basta olhar com alguma atenção a superfície da água para qualquer um de nós avistar, sem grande dificuldade,  o brilho dos olhos de um jacaré ou a sombra sinistra de um peixe de imensas proporções, que  nos faz considerar sobre a estabilidade da canoa na qual viajamos.

Em terra firme, os perigos são diferentes,  nem por isso menores. Aquele solo em que estávamos hospedados é o território natural da onça pintada e também da queixada, espécie de porco selvagem, que não costuma fugir de confrontos com o homem.

Mas o perigo maior de todos – conta-nos o nosso piloteiro – é a enorme quantidade de troncos de árvores submersas, que provocam acidentes, muitos deles fatais, com as canoas que transitam pelo rio em alta velocidade.  As histórias sobre o desaparecimento de pescadores experientes naquelas águas são quase tão abundantes quanto as piranhas que vivem no rio. 

“Mas não se preocupem”,  tenta tranquilizar-nos Negão, enquanto acelera o motor da canoa.  “Eu conheço todos os troncos daqui.”

Ah, bom...

Com tantos perigos à minha volta, quase não me reconheci quando voltei extasiada da minha primeira pescaria e corri para escrever no meu diário de viagem,  como se não pudesse acreditar no que estava acontecendo comigo: “TÔ GOSTANDO DE PESCAR!!!” - assim mesmo, em letras maiúsculas e com três pontos de exclamação.  Naquele primeiro dia, havia fisgado uma corvina, um candiru e um mandubé. Estava me sentindo gloriosamente bem sucedida e, para minha surpresa, sem nenhuma pena dos peixes.

Mas o melhor aconteceu na parte da tarde, quando pesquei uma imensa e bela pirarara, com cerca de vinte quilos! O peixão lutou, bufou, quase me levou para dentro do rio junto com ele. Tive que fazer uma força descomunal para manter firme a vara e recolher a linha com o molinete. Finalmente, depois de uns vinte minutos que me pareceram uma eternidade, consegui dominá-lo.  Meu coração quis pular pela boca quando vi o tamanho do peixe que se debatia na ponta do anzol!  


Estranhamente não senti pena do bravo animal naquele momento, mas fiquei  aliviada quando o devolvi  à água do rio e ele saiu nadando, ondulando apressadamente aquele imenso corpo amarelo e vermelho, quase como se nada lhe houvesse acontecido.

Finalmente eu começava a entender... Então era isso que “eles” sentiam quando iam pescar! Eu tinha entrado no castelo dos homens e observado o que havia ali dentro, com atenção e respeito.

E agora, depois de fisgar mais peixes do que eu me imaginava ser capaz e de tirar todas as fotografias que eu havia desejado,  já estava pronta para ir-me embora e voltar para o conforto e a domesticidade do meu mundo feminino. Ufa.

domingo, 18 de julho de 2010

Amor no CTI

Há cinco dias não tenho feito outra coisa senão entrar e sair de hospital.  É que meu pai levou um tombo em casa e foi atendido no setor de emergência de uma clínica. Devido à idade avançada, foi internado no Centro de Tratamento Intensivo, sob observação médica nas primeiras 24 horas.

Ambiente de CTI é quase sempre surreal, com aquele exército de enfermeiros, médicos e faxineiros marchando resolutos para baixo e para cima por entre os leitos,  enquanto pacientes e acompanhantes buscam, humildes e ansiosos, um sinal qualquer que lhes devolva um pouco da sensação de normalidade.

Pois esta semana eu estava eu ali dentro do CTI pensando nessas coisas, lastimando minha falta de sorte, quando uma visão inesperada me atraiu como um raio de luz: indiferente à movimentação na área, ali à frente estava um casal de cabelos grisalhos, namorando-se ternamente com os olhos, sem dizer palavra.

Quantos anos poderiam ter aqueles dois? Sessenta e cinco? Setenta? Ele estava deitado na beirada do leito, o corpo totalmente voltado para o lado de sua companheira, quase escorregando para fora dos lençóis. Ela, sentada na beirada de uma cadeira, olhava atenta e tranquila o rosto do velho companheiro, com uma expressão sorridente. Poucos centímetros separavam um do outro. Os dois olhares se encontravam e isso lhes bastava.

A impressão que eu tinha era de que os dois atuavam na cena de um filme, com música romântica ao fundo. De repente, aqueles monitores estressantes, com seu emaranhado de fios e alarmes, me pareciam equipamentos estilosos de filmagem hollywoodiana. Havia luz, câmera e ação no meu mundo imaginário - e muito amor na vida real.

Parei de imaginar coisas e resolvi deixar o casal em paz, para voltar aos meus afazeres.

No final do horário permitido às visitas, já esquecida do casal romântico, eu me dirigi à saída junto com os outros acompanhantes, todos com a mesma aparência cansada. Hora de ir para casa e relaxar um pouco, enfim. Inesperadamente, uma voz feminina, clara e firme se ouviu à porta do elevador: "Até amanhã para todos!" A leveza da voz surpreendeu o grupo circunspecto, deixando-nos alguns momentos sem reação. Por fim, dois ou três responderam com resmungos rápidos e tímidos: "Hummm... até..."

E lá se foi a senhora dos cabelos grisalhos, lépida e cheia de energia boa, cuidar da vida lá fora.

Quem a vir caminhando pela calçada nem vai desconfiar que metade de seu coração estará batendo longe dela, num box de CTI.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Chorando baixinho: Paulo Moura se foi...


O dia amanheceu desafinado hoje. Leio no jornal que o clarinetista Paulo Moura morreu, depois de um longo período de internação. Tinha 77 anos de idade.

Assim não vale! Gente como Paulo Moura não deveria morrer.

Resolvo ignorar a notícia triste, deixo o jornal num canto qualquer e ligo meu iPod no volume máximo. Sento-me à mesa e fico ouvindo Paulo Moura tocar o delicioso "Doce de Coco" do Jacob do Bandolim, entre um gole e outro do meu café da manhã. Saboreio cada nota como se o mestre do chorinho estivesse ali, sorrindo para mim.

A pequena notícia que acabo de ler no jornal me emociona: dois dias antes de morrer, Paulo Moura recebe a visita de um grupo de amigos - todos músicos - no seu quarto de hospital. Ali mesmo, os amigos tocam algumas músicas para ele, o ar se inunda de carinho - essa nota essencial na melodia da vida. Paulo Moura então se dirige à varanda do hospital, reúne forças e toca "Doce de Coco",  num dueto com Wagner Tiso. Um concerto inesquecível para uma platéia de sorte.

Desconfio que hoje vai ter festa no céu.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Bola murcha

Dois dias inteiros sem nenhum jogo de futebol na Copa do Mundo. As emoções estão cuidadosamente represadas para explodir em verde e amarelo amanhã de manhã, quando o Brasil enfrenta a Holanda nas quartas-de-final. Mas desde ontem a bola não se mexeu. São dias de bola murcha.

Sinto falta daquele momento carregado de emoção, quando toca o hino nacional dos países que se preparam para jogar e as câmeras de TV focalizam o rosto de cada jogador em close up.  Mal posso esperar pelo instante em que a bola começa a rolar no gramado e fico logo torcendo para ver tremular a rede do gol do adversário. Emoção barata, eu sei bem. Percebo que é tudo um grande teatro e que, desde que o mundo é mundo, o ser humano se alimenta de circo, tanto quanto de pão. Mas não consigo evitar: tenho fome de Copa do Mundo.

O melhor acontecimento desses dias sem jogo é o fato da gente ficar algumas horas sem ouvir o som das vuvuzelas, esta praga sulafricana que enlouquece qualquer pessoa, dentro ou fora dos estádios.

Outra coisa boa é poder ir ao supermercado, ao banco ou a um compromisso qualquer, sem aquela sensação de que o mundo está prestes a se acabar, como acontece nas horas que antecedem um jogo do Brasil.

Abro o jornal e a notícia me grita, impiedosa: dezenas de mortos e milhares de desabrigados nas enchentes que destruíram cidades inteiras na Zona da Mata de Pernambuco e Alagoas nestes últimos dias. Nas fotos da tragédia, vejo a imagem de bandeirinhas verdes e amarelas enfeitando inutilmente uma rua alagada.

Procuro um jeito de amenizar o sofrimento desses milhares de brasileiros que tanto perderam. Faço minha contribuição correta na conta bancária de um amigo engajado na campanha de ajuda aos flagelados. Respiro fundo, viro a página do jornal e volto a ler o noticiário da Copa: Elano continua com dores musculares, Ramirez suspenso pelo cartão amarelo, mas Kaká e Robinho estão em plena forma - ainda bem.

Tento me concentrar no jogo de amanhã contra a Holanda. Mas minha bola está murcha.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Maradona, a alegria da Copa

Não há como negar: depois das primeiras duas rodadas, a grande estrela desta Copa se chama Diego Maradona. Quase irreconhecível em seu terno cinza e gravata, muitos quilos mais magro e cheio de energia vital, o técnico da equipe argentina parece ter ressurgido do quinto dos infernos. Aquele baixinho abusado stá diabolicamente alerta, correndo para cima e para baixo junto à linha do campo onde os jogadores argentinos dão seu show de bola habitual. Nem de longe lembra a trágica figura de alguns anos atrás - aquele homem precoce e tristemente derrotado pelos excessos da fama, da cocaína e do álcool.

Maradona é o técnico que qualquer torcida gostaria de ver no comando do seu time: autoconfiante, engraçado, destemido e, além de tudo - pelo que se viu até o momento nesta Copa - competente. Ele trouxe de volta a alegria aos bancos da comissão técnica e nos faz rir a todos nós, torcedores de diversas nacionalidades.

Por tudo isso resolvi alugar na videolocadora um documentário sobre a vida deste atleta a quem os argentinos atribuem a glória de ter marcado o "gol do século" - aquele contra a Inglaterra na Copa de 1986, que contou com a ajudinha da "mão de Deus". Trata-se de um filme produzido em 2008 pela França e Espanha, sob a direção do sérvio Emir Kusturica, o mesmo que ganhou o Palma de Ouro de Cannes pelo excelente "Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios" nos anos 80.

O documentário se chama "Maradona" e desde logo quero avisar que está longe de ser excelente como os outros filmes dirigidos por Kusturica. Aqui o diretor consegue ter um ego ainda maior que o do Maradona e não sai da frente da câmera. O filme é cheio de exageros e hipérboles desnecessárias, apelando para a dramaticidade rasteira dos argentinos. Além disso, a postura política do Maradona  mostra-se panfletária e quase infantil, com amplos espaços cedidos a Fidel Castro e alguns insuportáveis discursos de palanque de Hugo Chávez e Evo Morales. Mas, dadas as circunstâncias, é um filme que merece ser visto nestes dias em que o mundo inteiro está ligado nas emoções do futebol.

É particularmente emocionante ver o lado familiar de Maradona através das imagens de vídeos caseiros, como as cenas em que ele dança apaixonado com sua namorada (e futura esposa) Claudia e aquelas em que brinca com as duas filhas ainda pequenas, Dalma e Giannina. Algumas entrevistas em que ele fala abertamente da sua dor por ter perdido momentos preciosos da convivência familiar, devido à dependência das drogas, são de cortar o coração. "Yo estaba muerto", confessa Maradona, que há seis anos acabou se divorciando de Claudia, mas parece ter se reconciliado com as filhas, agora adultas.

Maradona não é nem de longe uma figura exemplar, nem faz questão de parecer ser. Mas sua vida é indiscutivelmente fascinante, repleta de altos e baixos tão surpreendentes quanto os lances mirabolantes que faz com a bola.

Fora do campo, é uma história que nos faz refletir sobre as escolhas que fazemos ao longo das nossas vidas.

Para mim, Maradona é o grande destaque da Copa até o momento.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Na rua do Jogo da Bola, sem pressa de Copa do Mundo

Poucas ruas no mundo tem um nome tão simpático: rua do Jogo da Bola. E também são poucos os cariocas que são capazes de dizer onde fica essa rua, que é dos tempos do Brasil colonial.

É uma rua pequena e estreita, encravada no Morro da Conceição, a poucos passos da Praça Mauá, no centro histórico do Rio de Janeiro. Ali os portugueses costumavam praticar o antigo jogo de "bocha" (bola) num campo de terra batida. Este jogo, que até hoje é praticado em vários países, utiliza bolas pequenas e pesadas. E não tem nada a ver com o futebol.

O nome da rua pegou. O calçamento se modernizou (agora é de paralelepípedos), mas a rua continua tranquila e residencial como sempre foi: de tão estreita, só permite a passagem de um carro de cada vez. Quem tiver pressa, que procure outra freguesia, pois o ritmo da rua do Jogo da Bola nem de longe se compara ao de uma Copa do Mundo. Ali os vizinhos se conhecem pelo nome, o padeiro entrega o pão na porta das casas e as crianças brincam de pular corda, bola de gude e soltar pipa até a mãe chamar para dentro. E tem mais: todos os dias, às 6 horas da tarde, a igreja Nossa Senhora da Conceição toca a Ave Maria.

Tem gente aí duvidando? Ora, pois pois... Meninos, eu vi!

Estive lá essa semana, num passeio a pé pelo centro histórico do Rio de Janeiro, que me deixou ao mesmo tempo encantada e perplexa. Como é que eu, nascida e criada aqui, nunca havia subido aquele morro, onde se escreveram as primeiras histórias da minha cidade? Depois de revisitar o belo Mosteiro de São Bento, atravessei a avenida Rio Branco, subi os degraus de uma escadaria de concreto, desinteressante e escura e, de repente... me vi transportada para uma pequena cidade do interior, num passado indefinido.

No instante em que cheguei ao último degrau da escadaria, as imagens que surgiram à minha frente me pareceram tão incongruentes com as do centro do Rio, que senti vontade de rir:  de uma hora para a outra, mudaram as cores, os barulhos, as pessoas, a paisagem, o ritmo de vida. Vi um gato dormindo enrodilhado na capota de um carro, indiferente à presença dos seres humanos, e me senti a própria Alice no País das Maravilhas depois de ter caído naquele poço e saído pelo lado mágico.

Nas placas de rua do Morro da Conceição vi também outros nomes simpáticos, como Ladeira do Escorrega e Travessa do Sereno. E como foi bom ver a garotada brincando despreocupada nas ruas do Rio de Janeiro... Foi divertido ficar ali sem pressa, enquanto as crianças do bairro brincavam de escorregar pela Pedra do Sal abaixo, felizes e indiferentes à trabalheira que as mães com certeza teriam mais tarde para lavar aqueles fundilhos desgraçadamente encardidos!

domingo, 6 de junho de 2010

Cantarolando Verdi no Rio de Janeiro

Nas escadarias do Theatro Municipal do Rio de Janeiro espero ansiosa a abertura dos portões para assistir à ópera Il Trovatore de Verdi. Estou no meio de centenas de homens e mulheres que, como eu, tiraram do fundo do armário casacos e écharpes para enfrentar o friozinho inusitado desta noite de outono carioca. Ali na rua, enquanto aguardo, aproveito para admirar os detalhes da arquitetura imponente, os vitrais novamente translúcidos e coloridos, o ouro dos adornos centenários. Estou de boca aberta, olhando para o alto, esquecida de tudo.

O grito do vendedor de balas me tira do devaneio: "Olhaí, gente! São TRÊS horas de ópera! Para aguentar esse tempo todo é melhor vocês levarem umas balinhas, porque lá dentro vocês não vão encontrar nada disso não!" O tom é de quem-avisa-amigo-é, como se quisesse nos salvar a todos de uma desgraça inevitável. Resisto ao aviso do baleiro e continuo firme no propósito de "enfrentar" as três horas de canto lírico, com ou sem balas de hortelã para me manter acordada.

Na verdade, estou encantada com esta oportunidade rara de assistir na minha cidade a uma ópera, um gênero artístico que aprendi a apreciar nos anos que vivi em Nova York. Justo uma ópera de Verdi - meu compositor favorito! E ainda por cima com cenografia da Bia Lessa, essa talentosa recriadora de palcos do nosso país! Estou tão feliz, que começo a cantarolar mentalmente o famoso coral das bigornas de Il Trovatore e já nem penso mais na verdadeira guerra que tive que enfrentar para conseguir ingressos para esta última noite da temporada. Para chegar até aqui, há dias tive que suportar filas imensamente desorganizadas tanto no guichê do teatro quanto no site da Internet. Bem, deixa para lá. O importante é que agora estou aqui na porta do teatro, a poucos minutos da música de Verdi.

Os portões finalmente se abrem e, quando me vejo diante do foyer magnífico, restaurado em todo o esplendor do Rio de Janeiro de Pereira Passos do início do século XX, logo me esqueço daquelas balinhas de hortelã que pensava em comprar.

As três horas de ópera previstas pelo baleiro simplesmente voaram. Meus olhos e ouvidos buscavam ávidos cada detalhe da noite, tentando armazenar na memória as emoções que poucas formas artísticas podem produzir com tanto vigor. Tenho que confessar que os figurinos e a cenografia me comoveram pelo esforço heróico de se combinar parcimônia de recursos com grandiloquência de gestos. É missão quase impossível, já que ópera e minimalismo definitivamente não combinam. Mas há momentos de uma beleza incomum, como aqueles em que figurantes permanecem suspensos no ar, formando um cenário humano entre luzes e sombras competentes.

O libretto da ópera, eu sei, é de um ridículo atroz. Ele nos fala de ciganos com poderes mágicos, bruxa queimada em fogueira, bebês trocados, suicídio por amor impossível. É difícil imaginar uma história pior. Entretanto ela nos revela a alma romântica de uma época que se derramou no tempo, mas que na verdade, como a bruxaria dos seus enredos mágicos, nunca desapareceu por completo. Em compensação, a música de Verdi... ah, que luxo para os nossos sentidos! Essa, sim, é indiscutivelmente atemporal, universal e sublime.

Acordei hoje cedo cantarolando novamente o coral das bigornas. Penso como foi apropriada a escolha dessa ópera específica para reabrir o Theatro Municipal e acho graça na idéia que me vem à cabeça. Bigornas e martelos tem tudo a ver com aquilo. Afinal de contas, a reforma do teatro reflete o esforço de centenas de trabalhadores anônimos, que ficaram martelando aquela estrutura centenária durante dois anos, para que enfim a gente pudesse usufruir do nosso teatro, com a mesma grandiosidade que tinha quando foi inaugurado em 1909.

Bravo!


Quem quiser relembrar o famoso coral das bigornas de  O Trovador pode clicar aqui e assistir à montagem apresentada no Metropolitan de Nova York que encontrei no Youtube: http://www.youtube.com/watch?v=-1YsHzTv7mg.